Crítica de Cinema – Texto publicado originalmente em A ARCA, em 31/01/2006.
De todos os longas que resenhei para este notório website, e olhe que foram muitos, não tenho dúvidas em afirmar que O Segredo de Brokeback Mountain (Brokeback Mountain, 2005), o novo filme de Ang Lee, é disparado o mais difícil de analisar – o campeão, até o momento, era a obra-prima alemã A Queda! As Últimas Horas de Hitler. O motivo, todos devem saber. Afinal, trata-se do tão badalado, tão elogiado e tão polêmico longa que narra um relacionamento amoroso de vinte anos entre dois “cowboys gays”. Como falar de um assunto tão espinhoso sem levantar bandeiras (como o fraco Será Que Ele É?) ou parecer antiquado?
A resposta: não há como. É praticamente IMPOSSÍVEL assistir a O Segredo de Brokeback Mountain com um olhar imparcial e sem ver sua opinião refletir-se em seu próprio posicionamento acerca do homossexualismo, um tema que ainda representa um tabu enorme quando tratado publicamente, mesmo numa época tão liberal como a que vivemos. Pré-julgamentos e opiniões pessoais à parte, se o espectador não concorda com o tema, não adianta o longa conquistar uma pancada de prêmios por aí: a experiência será bastante desagradável, e ponto final. Por outro lado, se você não liga para rotulações e não está nem aí para o que cada um faz de sua vida, como eu, resta apenas aproveitar o que O Segredo de Brokeback Mountain realmente é: uma bela história de amor, e dane-se se o casal central é formado por dois homens.
Mas até que ponto este “pequeno detalhe” influi no resultado final do longa? Não influi de modo algum. O Segredo de Brokeback Mountain é incontestavelmente um GRANDE trabalho, embora carregue algumas falhas e não seja de jeito nenhum o filme-mais-que-perfeito que a crítica anda alardeando por aí. Entretanto, é lógico que os mais conservadores detestarão cada segundo da película; recomendo até que os interessados em assistir ao filme procurem evitar sessões lotadas, pois será terrivelmente incômodo agüentar os sorrisinhos maliciosos e as manifestações bestas de preconceito do público médio a cada troca de olhares ou carinhos entre os protagonistas. E alguém duvida que isto acontecerá? :-P
Então, vamos lá. O enredo acompanha vinte anos da vida dos cowboys Ennis Del Mar (Heath Ledger, Os Irmãos Grimm) e Jack Twist (Jake Gyllenhaal, Soldado Anônimo). Ennis, trabalhador rural, e Jack, vaqueiro de rodeio, são enviados pelo fazendeiro Aguirre (Randy Quaid) para trabalhar isolados no alto da montanha Brokeback, como pastores de ovelhas, durante o verão de 1963. O afastamento do resto do mundo aproxima os dois e a amizade nasce naturalmente. Em seguida, descobrem-se apaixonados um pelo outro.
Chega o final do verão e, com ele, o momento de cada um seguir seu caminho. Ennis mantém-se na pequena cidade de Wyoming, casa-se com sua namorada de infância Alma (Michelle Williams, a Jen de Dawson’s Creek) e tem duas filhas. Jack vai para Texas, para realizar seu sonho de se tornar um grande cowboy de rodeio, e envolve-se com a riquinha Lureen Monroe (Anne Hathaway, O Diário da Princesa). Quatro anos depois, Ennis recebe um cartão-postal de Jack, que visitará Wyoming dentro de alguns dias. Com a chegada de Jack, os dois enfrentam o fato de que a distância só fortaleceu o amor que sentem um pelo outro. Conscientes de que vivem numa época e num lugar onde o homossexualismo é condenado à marginalidade, decidem continuar encontrando-se, escondidos, no mesmo palco de seu relacionamento passado: o alto da montanha Brokeback – por sinal, quase uma personagem, tamanha sua importância para os personagens e para a história.
Beleza, eis a trama, e como ficou fácil perceber, o negócio é realmente complicado. Mas estamos falando de um filme dirigido por Ang Lee, cineasta de precisão cirúrgica, o que faz toda a diferença. Acostumado a lidar de forma delicada com questões polêmicas – vide os fantásticos O Banquete de Casamento, Razão e Sensibilidade e Tempestade de Gelo -, Ang Lee é tão natural em seu trabalho que, em muitos momentos, o espectador esquece que são dois caras ali. Uma seqüência em especial, já entregue no trailer (o momento em que Jack Twist parte em sua pick-up e vê o reflexo de Ennis Del Mar, indo em direção contrária), é de uma tristeza tão grande que poucos conseguirão sobreviver a ela sem sentir os olhos lacrimejar.
A meu ver, o grande trunfo de O Segredo de Brokeback Mountain é mesmo a direção de atores: embora Jake Gyllenhaal não esteja tão excelente a ponto de justificar sua indicação ao Oscar e Anne Hathaway não se esforce muito, o filme engrandece quando Heath Ledger e Michelle Williams estão em cena. Ledger, que indiscutivelmente sempre foi ótimo ator, está em seu auge no papel do bronco Ennis Del Mar, homem amargurado, descontente com sua situação e que jamais conseguirá aceitar para si mesmo sua condição de homossexual; e Williams, na minha humilde opinião, conseguiu a façanha de atropelar com um rolo compressor a atuação de Rachel Weisz em O Jardineiro Fiel, até o momento a melhor do ano, com seu trabalho no papel da sofrida e silenciosa Alma. A dupla de atores e a magnífica fotografia do mexicano Rodrigo Prieto (de Alexandre) já valem o ingresso.
Entretanto, Brokeback Mountain não é um filme perfeito: há uma ou outra escolha errada, como a seqüência final absurdamente clichêzenta – pra mim, surtiu o mesmo efeito do final de Titanic, na boa – e alguns lapsos da bela trilha sonora do argentino Gustavo Santaolalla (Diários de Motocicleta), que em certos momentos insiste em querer ser épica e grandiosa. O que mais me incomodou foi a indecisão do roteiro em ousar ou não ousar no relacionamento de Ennis e Jack. Explico: o primeiro contato íntimo entre os dois é uma seqüência PESADÍSSIMA. A partir daí, as coisas ficam bem mais amenas, resumindo-se a um ou outro abraço e alguns “beijos” aparentemente forçados. Numa cena em especial, tive a impressão de que Jake Gyllenhaal encolheu a boca na hora de beijar… Sério! :-D Num trabalho deste naipe, ou o filme entrega-se por completo ou não se entrega. Não dá para ficar no meio-termo.
Estes pequenos erros, pra falar a verdade, não fazem tanta diferença e não diminuem o impacto que Brokeback Mountain causa. Evidenciando principalmente a angústia dos cowboys em não poder pular de cabeça no amor que sentem um pelo outro, Ang Lee realizou um longa bonito, comedido, triste, absolutamente depressivo e, acima de tudo, IMPORTANTE. Para se assistir com o coração aberto, sem importar-se se o casal retratado na tela é gay, bissexual, lésbica, héterossexual ou qualquer outro rótulo. Talvez daqui a algum tempo, quem sabe, a intensa e comovente história de amor entre Ennis Del Mar e Jack Twist faça alguma diferença e ajude a eliminar de uma vez por todas este pré-conceito idiota que reina no nosso planeta. Como a apropriadíssima tagline que estampa o cartaz diz, o amor é nada mais do que uma força da natureza. :-)
CURIOSIDADES:
• O Segredo de Brokeback Mountain é baseado num pequeno conto escrito por E. Annie Proulx e publicado na revista The New Yorker em 1997. A edição que trazia o conto bateu alguns recordes de vendagens. O roteiro do filme ficou pronto no mesmo ano.
• O projeto passou pelas mãos de cineastas como Gus Van Sant e Joel Schumacher antes de parar nas mãos de Ang Lee.
• Heath Ledger protagoniza uma rápida cena de nudez frontal, na qual ele pula em um lago ao lado do personagem de Jake Gyllenhaal (que recusou-se a ficar nu e foi substituído por um dublê). A intenção de Ang Lee era eliminar qualquer traço de nudez da fita e mostrar apenas o salto a uma distância considerável, mas um paparazzo escondido fotografou o momento da filmagem com uma câmera digital. É fácil encontrar pela Net afora a imagem de Ledger peladão. Medo. :-P
• Embora não pareça, há pelo menos 75 tomadas de Brokeback Mountain que fazem uso de CGI. Muitas delas são apenas correções, melhora nas paisagens e nos céus, inclusão de cenários nas tomadas da cidade e a criação de uma tempestade. Muitas das ovelhas do pasto de Aguirre são virtuais. E por falar em ovelhas, quem mais aí sentiu uma vontade tremenda de cair na gargalhada ao notar, numa cena das ovelhas pastando, uma delas fazendo, er, suas “necessidades” num cantinho da tela? :-D
BROKEBACK MOUNTAIN • EUA • 2005
Direção de Ang Lee • Roteiro de Larry McMuntry e Diana Ossana
Baseado no conto “Brokeback Mountain”, de E. Annie Proulx
Elenco: Heath Ledger, Jake Gyllenhaal, Michelle Williams, Anne Hathaway, Randy Quaid, Linda Cardellini, Anna Faris, Graham Beckel.
134 min. • Distribuição: Europa Filmes.