O Segredo de Brokeback Mountain

31/08/2009

Crítica de Cinema – Texto publicado originalmente em A ARCA, em 31/01/2006.

O Segredo de Brokeback Mountain

De todos os longas que resenhei para este notório website, e olhe que foram muitos, não tenho dúvidas em afirmar que O Segredo de Brokeback Mountain (Brokeback Mountain, 2005), o novo filme de Ang Lee, é disparado o mais difícil de analisar – o campeão, até o momento, era a obra-prima alemã A Queda! As Últimas Horas de Hitler. O motivo, todos devem saber. Afinal, trata-se do tão badalado, tão elogiado e tão polêmico longa que narra um relacionamento amoroso de vinte anos entre dois “cowboys gays”. Como falar de um assunto tão espinhoso sem levantar bandeiras (como o fraco Será Que Ele É?) ou parecer antiquado?

A resposta: não há como. É praticamente IMPOSSÍVEL assistir a O Segredo de Brokeback Mountain com um olhar imparcial e sem ver sua opinião refletir-se em seu próprio posicionamento acerca do homossexualismo, um tema que ainda representa um tabu enorme quando tratado publicamente, mesmo numa época tão liberal como a que vivemos. Pré-julgamentos e opiniões pessoais à parte, se o espectador não concorda com o tema, não adianta o longa conquistar uma pancada de prêmios por aí: a experiência será bastante desagradável, e ponto final. Por outro lado, se você não liga para rotulações e não está nem aí para o que cada um faz de sua vida, como eu, resta apenas aproveitar o que O Segredo de Brokeback Mountain realmente é: uma bela história de amor, e dane-se se o casal central é formado por dois homens.

Mas até que ponto este “pequeno detalhe” influi no resultado final do longa? Não influi de modo algum. O Segredo de Brokeback Mountain é incontestavelmente um GRANDE trabalho, embora carregue algumas falhas e não seja de jeito nenhum o filme-mais-que-perfeito que a crítica anda alardeando por aí. Entretanto, é lógico que os mais conservadores detestarão cada segundo da película; recomendo até que os interessados em assistir ao filme procurem evitar sessões lotadas, pois será terrivelmente incômodo agüentar os sorrisinhos maliciosos e as manifestações bestas de preconceito do público médio a cada troca de olhares ou carinhos entre os protagonistas. E alguém duvida que isto acontecerá? :-P

Então, vamos lá. O enredo acompanha vinte anos da vida dos cowboys Ennis Del Mar (Heath Ledger, Os Irmãos Grimm) e Jack Twist (Jake Gyllenhaal, Soldado Anônimo). Ennis, trabalhador rural, e Jack, vaqueiro de rodeio, são enviados pelo fazendeiro Aguirre (Randy Quaid) para trabalhar isolados no alto da montanha Brokeback, como pastores de ovelhas, durante o verão de 1963. O afastamento do resto do mundo aproxima os dois e a amizade nasce naturalmente. Em seguida, descobrem-se apaixonados um pelo outro.

Chega o final do verão e, com ele, o momento de cada um seguir seu caminho. Ennis mantém-se na pequena cidade de Wyoming, casa-se com sua namorada de infância Alma (Michelle Williams, a Jen de Dawson’s Creek) e tem duas filhas. Jack vai para Texas, para realizar seu sonho de se tornar um grande cowboy de rodeio, e envolve-se com a riquinha Lureen Monroe (Anne Hathaway, O Diário da Princesa). Quatro anos depois, Ennis recebe um cartão-postal de Jack, que visitará Wyoming dentro de alguns dias. Com a chegada de Jack, os dois enfrentam o fato de que a distância só fortaleceu o amor que sentem um pelo outro. Conscientes de que vivem numa época e num lugar onde o homossexualismo é condenado à marginalidade, decidem continuar encontrando-se, escondidos, no mesmo palco de seu relacionamento passado: o alto da montanha Brokeback – por sinal, quase uma personagem, tamanha sua importância para os personagens e para a história.

Beleza, eis a trama, e como ficou fácil perceber, o negócio é realmente complicado. Mas estamos falando de um filme dirigido por Ang Lee, cineasta de precisão cirúrgica, o que faz toda a diferença. Acostumado a lidar de forma delicada com questões polêmicas – vide os fantásticos O Banquete de Casamento, Razão e Sensibilidade e Tempestade de Gelo -, Ang Lee é tão natural em seu trabalho que, em muitos momentos, o espectador esquece que são dois caras ali. Uma seqüência em especial, já entregue no trailer (o momento em que Jack Twist parte em sua pick-up e vê o reflexo de Ennis Del Mar, indo em direção contrária), é de uma tristeza tão grande que poucos conseguirão sobreviver a ela sem sentir os olhos lacrimejar.

A meu ver, o grande trunfo de O Segredo de Brokeback Mountain é mesmo a direção de atores: embora Jake Gyllenhaal não esteja tão excelente a ponto de justificar sua indicação ao Oscar e Anne Hathaway não se esforce muito, o filme engrandece quando Heath Ledger e Michelle Williams estão em cena. Ledger, que indiscutivelmente sempre foi ótimo ator, está em seu auge no papel do bronco Ennis Del Mar, homem amargurado, descontente com sua situação e que jamais conseguirá aceitar para si mesmo sua condição de homossexual; e Williams, na minha humilde opinião, conseguiu a façanha de atropelar com um rolo compressor a atuação de Rachel Weisz em O Jardineiro Fiel, até o momento a melhor do ano, com seu trabalho no papel da sofrida e silenciosa Alma. A dupla de atores e a magnífica fotografia do mexicano Rodrigo Prieto (de Alexandre) já valem o ingresso.

Entretanto, Brokeback Mountain não é um filme perfeito: há uma ou outra escolha errada, como a seqüência final absurdamente clichêzenta – pra mim, surtiu o mesmo efeito do final de Titanic, na boa – e alguns lapsos da bela trilha sonora do argentino Gustavo Santaolalla (Diários de Motocicleta), que em certos momentos insiste em querer ser épica e grandiosa. O que mais me incomodou foi a indecisão do roteiro em ousar ou não ousar no relacionamento de Ennis e Jack. Explico: o primeiro contato íntimo entre os dois é uma seqüência PESADÍSSIMA. A partir daí, as coisas ficam bem mais amenas, resumindo-se a um ou outro abraço e alguns “beijos” aparentemente forçados. Numa cena em especial, tive a impressão de que Jake Gyllenhaal encolheu a boca na hora de beijar… Sério! :-D Num trabalho deste naipe, ou o filme entrega-se por completo ou não se entrega. Não dá para ficar no meio-termo.

Estes pequenos erros, pra falar a verdade, não fazem tanta diferença e não diminuem o impacto que Brokeback Mountain causa. Evidenciando principalmente a angústia dos cowboys em não poder pular de cabeça no amor que sentem um pelo outro, Ang Lee realizou um longa bonito, comedido, triste, absolutamente depressivo e, acima de tudo, IMPORTANTE. Para se assistir com o coração aberto, sem importar-se se o casal retratado na tela é gay, bissexual, lésbica, héterossexual ou qualquer outro rótulo. Talvez daqui a algum tempo, quem sabe, a intensa e comovente história de amor entre Ennis Del Mar e Jack Twist faça alguma diferença e ajude a eliminar de uma vez por todas este pré-conceito idiota que reina no nosso planeta. Como a apropriadíssima tagline que estampa o cartaz diz, o amor é nada mais do que uma força da natureza. :-)

CURIOSIDADES:

O Segredo de Brokeback Mountain é baseado num pequeno conto escrito por E. Annie Proulx e publicado na revista The New Yorker em 1997. A edição que trazia o conto bateu alguns recordes de vendagens. O roteiro do filme ficou pronto no mesmo ano.

• O projeto passou pelas mãos de cineastas como Gus Van Sant e Joel Schumacher antes de parar nas mãos de Ang Lee.

• Heath Ledger protagoniza uma rápida cena de nudez frontal, na qual ele pula em um lago ao lado do personagem de Jake Gyllenhaal (que recusou-se a ficar nu e foi substituído por um dublê). A intenção de Ang Lee era eliminar qualquer traço de nudez da fita e mostrar apenas o salto a uma distância considerável, mas um paparazzo escondido fotografou o momento da filmagem com uma câmera digital. É fácil encontrar pela Net afora a imagem de Ledger peladão. Medo. :-P

• Embora não pareça, há pelo menos 75 tomadas de Brokeback Mountain que fazem uso de CGI. Muitas delas são apenas correções, melhora nas paisagens e nos céus, inclusão de cenários nas tomadas da cidade e a criação de uma tempestade. Muitas das ovelhas do pasto de Aguirre são virtuais. E por falar em ovelhas, quem mais aí sentiu uma vontade tremenda de cair na gargalhada ao notar, numa cena das ovelhas pastando, uma delas fazendo, er, suas “necessidades” num cantinho da tela? :-D

BROKEBACK MOUNTAIN • EUA • 2005
Direção de Ang Lee • Roteiro de Larry McMuntry e Diana Ossana
Baseado no conto “Brokeback Mountain”, de E. Annie Proulx
Elenco: Heath Ledger, Jake Gyllenhaal, Michelle Williams, Anne Hathaway, Randy Quaid, Linda Cardellini, Anna Faris, Graham Beckel.
134 min. • Distribuição: Europa Filmes.


O Mundo de Jack e Rose

31/08/2009

Crítica de Cinema – Texto publicado originalmente em A ARCA, em 18/11/2005.

O Mundo de Jack e Rose (The Ballad of Jack and Rose)

Histórias bizarras quase sempre rendem filmes bastante interessantes (Spike Jonze que o diga). É ainda melhor quando o enredo em questão traz uma polêmica qualquer de leve. E mais legal ainda quando é fruto de estúdios independentes que, sem as amarras das grandes distribuidoras, fazem o que querem e não estão nem aí. Melhor para nós!

O que despertou minha curiosidade com relação ao drama O Mundo de Jack e Rose (The Ballad of Jack and Rose, 2005) foi justamente a junção destes três requisitos listados acima. Pra completar o caldo, a produção representa a suposta última oportunidade de conferir nas telonas o sempre fantástico desempenho do excelentíssimo senhor Daniel Day-Lewis, astro do genial Em Nome do Pai, que anunciou que não voltará a filmar – o que é uma bela de uma SACANAGEM, diga-se de passagem. Como podemos notar, O Mundo de Jack e Rose traz elementos de sobra para torná-lo obrigatório para qualquer fã de cinema indie. Como eu, por exemplo. ;-D

O resultado final desta empreitada, entretanto, é bem mais estranho que seu enredo, e isto definitivamente não é um elogio. Não, não: O Mundo de Jack e Rose não é um filme ruim. Bem longe disso: é sensível, delicado, cruel e absurdamente poético. O problema é que esta magia toda dura somente até certo ponto e, a partir daí, parece que algo se perdeu. A sopa esfria. Então, a fita termina e dá uma sensação de que algo está meio fora do lugar… O curioso é que, mesmo com esta sensação, não dá pra negar que esta era a única maneira de contar esta história sem avacalhar todo o meio-de-campo. Mas… hein? Esta última linha ficou confusa? Pois é, até eu achei. :-)

Logo, vamos às explicações. Antes de qualquer coisa, porém, o tradicional resumão do enredo: Jack Slavin (Day-Lewis) vive numa ilha inabitada na costa leste dos Estados Unidos, no que sobrou de uma antiga comunidade hippie. O ano é 1986, e do numeroso grupo de pessoas interessadas em “reciclar o mundo” construindo uma nova sociedade baseada na ausência de TV e na convivência harmoniosa com a natureza, sobrou apenas Jack e sua filha Rose (Camilla Belle, de O Mundo Perdido: Jurassic Park). Instalados na ilhota, Jack acredita que Rose crescerá uma pessoa melhor se mantê-la à distância de qualquer um – à exceção do simplório floricultor Gray (o mais-que-bacana Jason Lee, num papel pequeno e muito comedido), que de vez em quando leva algumas mudas à menina.

Não que este isolamento revolte Rose. Ao contrário: a jovem adora o pai e acredita fielmente nos ideais que Jack prega. Aquele mundinho é o universo dela e ponto final.

A idiossincrasia de Jack sofre uma leve mudança quando percebe que Rose, então com dezesseis anos, está prestes a entrar na fase adulta. Jack, que tem uma doença fatal e pouquíssimo tempo de vida, fica preocupado com os rumos de Rose depois de sua iminente partida. Assim, decide convidar Kathleen (a ótima Catherine Keener, de A Intérprete), com quem “fornica” de vez em quando (!), a ir morar com ele para ajudar na criação de Rose. Kathleen, que vive numa cidadezinha próxima, aceita o convite, já que nutre certo sentimento por Jack e precisa de dinheiro (o cara é rico).

A situação foge ao controle quando Kathleen ancora no lugar na companhia de seus dois filhos adolescentes, o irônico Rodney (Ryan McDonald, da série Night Visions) e o revoltado Thaddius (Paul Dano, Show de Vizinha). O mundinho de Rose desaba. Ameaçada, enciumada e incomodada com a presença de tanta gente estranha, a jovem decide que não permitirá que ninguém, mas ninguém, a separe de seu amado pai. Tem início, assim, o caos.

Bem, o enredo é este. Simples, mas que abre uma caixa de possibilidades. E a direção de Rebecca Miller (do excelente e pouco visto O Tempo de Cada Um) é mais do que credenciada, já que a cineasta imprime uma boa dose de delicadeza e sutileza num roteiro que poderia facilmente cair no óbvio – Rose enlouquecendo em fúria sanguinária (!) – ou no vulgar – alguém aí pensou numa relação incestuosa entre Jack e Rose? E por falar nisso, os mais puritanos devem ficar em casa e evitar O Mundo de Jack e Rose, visto que este lance de rolar algo entre pai e filha está presente o tempo todo – e uma cena em particular explicita o troço numa paulada só. Mas a cena é tão cuidadosa que torna-se impossível não se comover. A ligação entre Jack e Rose, o filme quer nos mostrar, vai muito além disto.

Mas então… o que aconteceu? Por que o resultado geral de O Mundo de Jack e Rose é tão mais ou menos? Não se sabe. O longa começa muito bem, com um clima totalmente mágico e nostálgico, maravilhosas canções de Bob Dylan (Shooting Star é simplesmente ex-ce-len-te!) e atuações bacaníssimas de grande parte do elenco, com destaque para a graciosa Jena Malone, como a maluquinha Red Berry (que torna-se amiga de Rose), e para o fantástico desempenho de Ryan McDonald, dono de um personagem ultra-complexo – um adolescente com complexo de obesidade que acabou de se descobrir homossexual. Demonstrando uma maturidade fora do comum em cena, McDonald não deixa seu Rodney cair no estereótipo um segundo sequer.

O problema é que o script, também desenvolvido por Rebecca Miller, dá uma caída legal em seu segundo ato. Na ânsia de evitar as armadilhas e as soluções fáceis na qual um plot desta natureza pode cair, Miller deixa sua história leve demais, em certos momentos até irreal. Mas como disse antes, não tinha como fugir. Se a direção injetasse um mínimo de malícia em O Mundo de Jack e Rose, correria o sério risco de fazer o espectador criar antipatia com seus personagens. Só que esta “leveza” prejudica bastante o andamento da película. E no final, o que poderia render um filme marcante, rende apenas um filme bom e nada mais, daqueles que você assiste uma vez, sai do cinema, esquece e não cogita a idéia de ver novamente. Até mesmo porque ninguém é louco de agüentar mais de duas horas de uma fita estrelada pela Camilla Belle. Meu, que menina ruim! Até o poste da esquina da minha casa tem mais expressão que ela, com aquele risco de caneta Pilot que é a sobrancelha da coitada. :-P

Ainda assim, O Mundo de Jack e Rose vale o dinheiro do ingresso tranqüilamente. Uma ótima pedida para quem quer fugir dos blockbusters, mais exatamente de um certo bruxo inglês, e curtir um cineminha mais intimista e sossegado. Só tente não criar muita expectativa, para não quebrar a cara no final. E tem o Jason Lee no elenco, caceta! A presença do cara paga qualquer valor! É o Banky! É o Brodie Bruce! É o Síndrome! Ai Jisuis, eu sou nerd. :-)

CURIOSIDADES:

• Daniel Day-Lewis declarou que não mais faria filmes depois de seu trabalho em Gangues de Nova York, de Martin Scorsese, mas voltou atrás em O Mundo de Jack e Rose por conta de um único detalhe: Day-Lewis é casado com Rebecca Miller, a diretora do longa. Os dois se conheceram nas filmagens de As Bruxas de Salem, na qual Day-Lewis atuou e Miller serviu de consultora (o filme foi baseado na peça de autoria do seu pai, o dramaturgo Arthur Miller).

• Mesmo sendo a primeira escolha para o papel de Jack, Daniel Day-Lewis recusou a princípio. Dizem as más línguas que o ator só aceitou fazer quando ficou enciumado com a lista de atores que Miller preparou para substituí-lo.

O Mundo de Jack e Rose foi rodado em seqüência contínua, o que é muito raro hoje em dia – geralmente as cenas são captadas numa ordem totalmente diferente da apresentada no resultado final. A fita foi rodada em Super-16mm, e não em 35mm, como são filmadas quase 100% das películas hoje em dia.

THE BALLAD OF JACK AND ROSE • EUA • 2005
Direção de Rebecca Miller • Roteiro de Rebecca Miller
Elenco: Daniel Day-Lewis, Camilla Belle, Catherine Keener, Ryan McDonald, Paul Dano, Jena Malone, Beau Bridges e Jason Lee.
112 min. • Distribuição: Imagem Filmes.


Ladrão de Diamantes

31/08/2009

Crítica de Cinema – Texto publicado originalmente em A ARCA, em 07/02/2005.

Ladrão de Diamantes (After the Sunset)

Em alguns casos, as evidências são claras. Só de você olhar um cartaz, ler uma sinopse resumida, assistir um trailer ou até mesmo tomar conhecimento do nome do diretor, do roteirista e dos atores envolvidos em uma produção, já é possível identificar se o trabalho será bom ou ruim. Atualmente, o exemplar mais notório é, sem dúvida, o tal do Quarteto Fantástico idealizado pela tentativa de cineasta Tim Story. Ah, pelo amor de Deus, o cara dirigiu Táxi! E se nem um nome decente o cara tem (Tim Story, pra mim, é nome de filme da Pixar), será que alguém ainda acredita que ele tenha a capacidade de realizar um bom trabalho com a equipe do Sr. Fantástico?

Bem, como estava dizendo, alguns trabalhos conseguem se transformar em tragédias anunciadas desde o início de sua produção – o que parecia ser o caso deste Ladrão de Diamantes (After The Sunset, 2004), novo longa comandado pelo competente Brett Ratner (A Hora do Rush, Dragão Vermelho).

Vou explicar: este trabalho deu todos os indícios de que seria, no mínimo, um filmeco para se assistir na TV aberta quando não tivesse mais nada de importante a se fazer. Os elementos: uma sinopse envolvendo um tema bem batido (no caso, um roubo de diamantes); Pierce Brosnan fazendo um papel que não é James Bond, mas tem todas as características de James Bond (aliás, papel este que lembra muito Thomas Crown – A Arte do Crime, também com Brosnan); a totosona Salma Hayek no principal papel feminino – ok, eu sei, ela é linda e fez um bom trabalho em Frida, mas no geral ela é bem canastra; um cartaz americano bem bisonho (eu olhei aquilo e pensei: “Ué, novo filme do Robert Rodriguez? Cadê o Sin City?”), e um cartaz brazuca mais torto ainda; e por último, um trailer que agradou menos que o conjunto da obra já citado. Afinal, o que se vê no negócio é um monte de cenas bem ao estilo Missão: Impossível e Onze Homens e um Segredo, com um zézinho descendo do teto com aquelas roupinhas coladas e roubando um bagulho hiper-ultra-mega-seguro. Mas as aparências enganam, às vezes.

Pois bem: encarei a sessão e, na saída, fui obrigado a concordar: mais uma vez, torta na cara! Mais ou menos como em Entrando Numa Fria Maior Ainda, só que ao inverso. Enquanto a fita do Ben Stiller tinha tudo pra ser um filmão e acabou decepcionando bastante, Ladrão de Diamantes se mostrou uma ótima surpresa, daquelas que você assiste e sai do cinema de alma lavada. E o melhor de tudo: ela parece clichê, mas até que não é muito não. Tudo bem, aqui temos um roubo de algum artefato guardado a sete chaves e depois, a fuga dos ladrões para um paraíso tropical. Mas geralmente os longas-metragens com esta temática costumar terminar assim, enquanto que este filme começa deste jeito.

Bem, a trama é mais ou menos assim: Max Burdett (Brosnan), apelidado de “O Rei dos Álibis”, e sua parceira de crimes e namorada Lola Cirillo (Hayek) acabam de concluir mais um plano: o roubo do segundo dos três diamantes de Napoleão. Segundo a lenda, as três pedras enfeitavam o escaravelho da espada de Napoleão, e foram retiradas da espada quando o imperador partiu para seu exílio – e cada um dos diamantes estariam avaliados em aproximadamente mais de 80 milhões de dólares. Enfim, Max e Lola encerram mais um plano bem-sucedido, para o desespero do atrapalhado agente do FBI Stan Lloyd (o hilário Woody Harrelson, talvez o ponto alto da película) – que parece ser o único que realmente sabe com quem a polícia está lidando, já que persegue e tenta prender Max (sem sucesso) há anos.

Depois deste segundo assalto, Max e Lola decidem pendurar as chuteiras e curtir a “aposentadoria” numa paradisíaca ilha no Caribe. O que era pra ser somente “um merecido descanso”, toma outros rumos quando o casal percebe estar sendo seguido pelo agente do FBI, doente por vingança. Stan está convicto de que Max e Lola não tiraram férias naquele lugar por acaso, e tem um motivo nobre para isso: a Ilha Paraíso receberá a visita de um transatlântico, cuja atração principal é a exposição do… Já adivinhou? É isso mesmo: o terceiro diamante de Napoleão, o único que falta na coleção de Max. Seria uma grande coincidência? Ou a tal “aposentadoria” é só fachada para que Max possa tranqüilamente passar a mão na pedrinha sem que ninguém apareça para torrar seu saco?

De qualquer forma, Stan, mesmo sem jurisdição, decidiu que desta vez não deixará barato. Porém, Max, que não é burro nem nada, rapidamente se torna “amigo” do detetive (!), de modo a talvez despistá-lo. Mas… afinal, Max desistiu ou não de roubar? Onde entra Lola nesta história? Ela quer mesmo largar a vida de crimes ou está somente blefando? Stan age por justiça, vingança pessoal ou interesses próprios? E a bela policial local, Sophie (Naomie Harris), pode estar envolvida? E qual será o grau de ligação de Max com o perigoso Henri Mooré (o sempre ótimo Don Cheadle), o bandidão mais temido da ilha?

Claro que todas estas perguntas serão respondidas muito rapidamente – e de qualquer jeito, até lá todo mundo já adivinhou o que vai acontecer. Aliás, os rumos da história são muito fáceis de se descobrir. Talvez estes sejam os únicos pontos negativos a se destacar. O que importa, mesmo, é que a fita é muito bacana! Os diálogos são bons, as atuações são muito descompromissadas (principalmente a de Woody Harrelson, que mostra estar se divertindo a valer no papel), e o público se diverte às pampas durante a projeção. Sim, não há nada que faça a platéia exclamar: “Minha nossa, que excelente longa-metragem! Sem dúvida, ficará marcado para sempre nos anais da indústria cinematográfica”. É só um bom filme, divertido, engraçado, gostoso de ver. Altamente recomendado, sim, mas a nível de diversão rasteira, de passatempo fast-food.

Se é isto o que você procura, Ladrão de Diamantes é um trabalho de alta qualidade, perfeito dentro desta proposta. Nada mal para um projetinho feito sem muitas pretensões. E nada mal pra mim que, como já disse, esperava mais um filmeco… Tá bom, admito! Sou um pusta dum velho ranzinza, às vezes! Eu sou chato e deveria ser mais calminho! Estou tentando, tá? :-D

CURIOSIDADES:

• Apesar de parecer que foi tudo uma beleza, os atores enfrentaram um pequeno problema durante as filmagens de Ladrão de Diamantes: o frio. Em algumas cenas de praia, inclusive, é possível notar até a fumacinha da respiração dos atores. E eu fiquei esperando pra ver se a Salma Hayek também estava com frio…! Desculpem, meninas que lêem A ARCA, geralmente não sou machista e sei que a piadinha foi infame, mas precisava soltar esta! :-P

• Assim como aconteceu com O Aviador, de Martin Scorsese (cujo material promocional precisou ser substituído por conter um erro na grafia do nome de uma atriz), a divulgação de Ladrão de Diamantes custou um pouco mais além da conta devido a um erro. A rede americana de cinemas AMC firmou uma parceria com a New Line para divulgar o filme em suas salas, com pacotes gigantes de pipoca personalizados com imagens dos personagens. O problema: O nome de Salma Hayek foi escrito “Hayak”. O erro foi corrigido, mas fico imaginando o que devem ter feito com trocentos saquinhos gigantes de pipoca…

• A fantástica casa de praia do Casal Max e Lola nas Bahamas é, na verdade, uma sede de salva-vidas e fica na praia de Sycamore Cove, ao norte de Malibu, na Califórnia.

• Em dado momento do filme, é possível ouvir Maria Rita, a filha de Elis Regina (mas isso ninguém sabe!), cantando o clássico Agora Só Falta Você, originalmente interpretado por Rita Lee.

AFTER THE SUNSET • EUA • 2004
Direção de Brett Ratner • Roteiro de Craig Rosenberg e Paul Zbyszewski
Elenco: Pierce Brosnan, Salma Hayek, Woody Harrelson, Don Cheadle, Naomie Harris, Chris Penn, Mykelti Williamson, Troy Garity.
100 min. • Distribuição: New Line Cinema/PlayArte Pictures.


Melinda e Melinda

31/08/2009

Crítica de Cinema – Texto publicado originalmente em A ARCA, em 27/05/2005.

Melinda e Melinda (Melinda and Melinda)

Não sei como o Fanboy e o El Cid ainda não me botaram pra correr deste site! Afinal, A ARCA é uma casa quase totalmente nerd, certo? E alguém por acaso conhece algum nerd que, em plena semana de estréia do esperadíssimo terceiro-último capítulo da saga Star Wars, não queria nem saber do glorioso Darth Vader e encontrava-se em extremo estado de ansiedade e empolgação para assistir ao novo trabalho do Woody Allen? Pois é, agora você pode dizer que conhece pelo menos um. Muito prazer, eu sou o Zarko! “Cult maldito” para os íntimos. :-D

Brincadeiras à parte, sou mesmo um grande fã dos filmes de Allen. Na minha humilde opinião, é o único cineasta vivo que realmente faz jus à alcunha de “gênio” que carrega nas costas. E o tal novo trabalho do diretor, o filme pelo qual este que vos fala esperou com muito carinho e amor, é mais uma prova de seu inegável talento: Melinda e Melinda (Melinda and Melinda, 2004), 40.º longa dirigido e 55.º escrito pelo cineasta, é mesmo tudo isto que andam falando por aí; Allen, que não traz uma grande fita desde 2000, quando dirigiu Trapaceiros, entrega um de seus melhores trabalhos e mostra que sua criatividade não tem limites. O próprio confessou recentemente numa entrevista que, deixando a modéstia de lado, tem muito mais idéias do que conseguirá filmar.

Acostumado a revezar-se entre dramas profundos e comédias sutis, Woody Allen comanda neste seu último trabalho uma espécie de “dois em um”, uma narrativa que divide um mesmo ponto de partida em duas histórias, cada uma delas dentro de um dos gêneros. Tudo começa num jantar entre quatro intelectuais – personagens típicos do universo de Allen. Dois deles, o escritor Max (Larry Pine, de Os Excêntricos Tenenbaums) e o dramaturgo Sy (Wallace Shawn, colaborador habitual de Allen), iniciam uma amistosa discussão sobre a natureza humana. Qual seria a tendência do ser humano a encarar seus atos? Incliná-la para o lado trágico? Sim, na visão de Max. Ou encará-la através de um ponto de vista mais cômico, descontraído? É o que defende Sy.

Para que cada um possa provar sua tese, um terceiro escritor lança uma idéia: o cara dá uma premissa básica, e cada um continua a historinha a seu modo. A idéia: uma mulher, chamada Melinda (Radha Mitchell), chega de penetra num jantar. Que idéia, hein? :-)

Então, começam os “dois filmes em um”, sempre em paralelo. Na história dramática, um casal – o ator desempregado Lee (Jonny Lee Miller, de Trainspotting) e a viciada em compras Laurel (Chloë Sevigny) – oferece um jantar requintado a um diretor de teatro que pode ou não oferecer um papel a Lee em seu novo espetáculo. Lee e Laurel estão em crise, mas controlam a situação sem ousar tocar no assunto. E eis que, no meio do jantar, surge Melinda, de cabelos encaracolados, amiga de infância de Laurel e precisando de um lugar para ficar. Melinda, mulher misteriosa de passado turbulento, com tendência a beber tudo o que vê pela frente e fumar um cigarro atrás do outro, destila toda sua neurose narrando o melodrama que viveu nos últimos anos, e detona de vez o casamento de Lee e Laurel. E ainda acrescenta mais um personagem à trama, o sedutor pianista Ellis (o ótimo Chiwetel Ejiofor), que poderá selar o destino de Laurel e da própria Melinda.

Na trama cômica, substitue-se o casal. Somos apresentados, então, ao fracassado ator Hobie (Will Ferrell… sim, ele mesmo!) e sua esposa, a cineasta Susan (Amanda Peet, de Identidade). Susan oferece um jantar a um produtor que pode vir ou não a liberar verba para seu próximo projeto. Hobie espera participar deste projeto, mas é nítido que não há espaço para ele. Tanto no filme da esposa, quanto no próprio casamento. Então, Melinda aparece, de cabelos lisos, nova vizinha do andar de baixo, com um carisma fora do comum e um passado de relacionamentos tragicamente cômicos. Melinda, com sua conversa irresistível, conquista todos à sua volta. E, inconscientemente, desperta o amor de Hobie. Enfim, duas histórias que pretendem, cada um a seu modo, entregar como um gênero, ao final, faz parte do outro. E ponto.

Pois bem, o enredo de Melinda e Melinda é este aí. E quem conhece bem a filmografia de Woody Allen, já sabe o que encontrará neste longa: estrutura simplista, história amarradinha, diálogos memoráveis – reparem na excelente primeira conversa entre Melinda e o pianista Ellis – e atuações bacanas de todo o elenco. Impressiona a maneira com que Allen trabalha com elementos fantásticos em seus filmes; é tudo feito de uma forma tão simples e funcional que me faz até questionar as megaproduções com orçamentos astronômicos. O espectador nota a transição da trama dramática para a cômica através da trilha sonora, do brilho das cenas e do visual de Melinda (a única pessoa em comum nas duas histórias, e ainda assim as duas não são a mesma pessoa). Quer coisa mais simples que isso? :-D

Quanto ao elenco, podemos dizer que Allen, mais uma vez, dá um banho quando se trata de direção de atores. O caso mais notório é o de Radha Mitchell, mais conhecida como a fria esposa de Johnny Depp no fraco Em Busca da Terra do Nunca. Mitchell, que geralmente é apenas uma atriz “sem sal”, entrega uma atuação bem cuidadosa como as Melindas, e se sai bem em ambos os gêneros. Outro que destaca-se é o inglês Chiwetel Eliojor (que debutou no cinema com o subestimado Coisas Belas e Sujas), como Ellis. Ah, e um comentário: sim, a Chloë Sevigny é ótima, e mostra de uma vez por todas que não é somente aquela atriz que topou fazer uma cena explícita de sexo oral no controverso Brown Bunny. :-P

Bem, quanto ao caso de Will Ferrell… bem, a atuação do ex-SNL é praticamente uma cópia carbono do tipo neurótico que Allen acostumou-se a incorporar ao longo de sua carreira. Sim, o cara está igualzinho! Ferrell tomou o cuidado de copiar inclusive o jeito gago e nervoso de falar do habitual alter-ego do diretor. Entretanto, devo dizer que Ferrell é de longe o ator mais fraco do elenco e, se o ator até que não chega a incomodar em alguns momentos, em outros quase põe tudo a perder. Não entendo como tem gente que acredita no “suposto” talento deste indivíduo…

Infelizmente, nem tudo é perfeito em Melinda e Melinda. O final, por exemplo, parece que foi rodado às pressas. Enquanto uma das histórias parece estar incompleta, a outra termina rapidamente e meio sem graça. A impressão que se tem é que o orçamento do filme chegou ao seu limite e Woody Allen precisou se virar para terminar a fita com o material que tinha em mãos. Nada, claro, que tire o brilho deste que é, de longe, um dos destaques da excepcional filmografia do cineasta. Pra resumir, Melinda e Melinda é divertido, tem uma mensagem bacana e vale o preço do ingresso numa boa. E Woody Allen faz milagre. Menos com o Will Ferrell.

Só uma ressalva: não concordo muito com o ponto de vista do diretor neste roteiro. Afinal, segundo ele, qualquer tragédia tem seu lado cômico. Aposto que ele diz isso porque não assistiu O Filho do Máskara! :-D

CURIOSIDADES:

• De toda a equipe técnica de Melinda e Melinda, somente um pequeno grupo de pessoas tiveram acesso ao roteiro do filme na íntegra. É um dos métodos de Woody Allen, para que suas histórias não vazem. Do elenco, somente Radha Mitchell leu o texto inteiro. Os outros atores receberam somente as páginas relativas aos seus papéis.

• A história dramática de Melinda é identificada pela clássica Concerto em D para Violão: Andantino, composta por Igor Stravinsky. Já o enredo cômico é narrado com a ótima Take the A Train, do pianista de jazz Duke Ellington.

Melinda e Melinda é considerado um dos maiores sucessos de Woody Allen nos EUA, rendendo a impressionante marca de… R$ 4 milhões (!). Sim, esta marca para um trabalho de Allen é realmente impressionante.

MELINDA AND MELINDA • EUA • 2004
Direção de Woody Allen • Roteiro de Woody Allen
Elenco: Radha Mitchell, Will Ferrell, Chloë Sevigny, Jonny Lee Miller, Amanda Peet, Chiwetel Ejiofor, Wallace Shawn, Zak Orth, Larry Pine, Josh Brolin.
99 min. • Distribuição: Fox Searchlight.


Casa de Areia e Névoa

31/08/2009

Crítica de Cinema – Texto publicado originalmente em A ARCA, em 31/10/2004.

Casa de Areia e Névoa (House of Sand and Fog)

Depois de quase nove meses de espera, finalmente o público brazuca têm a oportunidade de conferir o elogiadíssimo Casa de Areia e Névoa (House of Sand and Fog, 2003). Não é difícil entender o porquê desta demora toda. O longa de estréia do cineasta Vadim Perelman é lento, introspectivo e bem doloroso de assistir, o que afastará a maior parte do público. Mas não se engane: Casa de Areia e Névoa é um trabalho excelente. Lento, sim, mas no sentido de dar o tempo certo para as tranformações de cada um dos personagens. Doloroso, sim, para estes mesmos personagens, que descem até o fundo do poço várias vezes durante a projeção. E doloroso para nós, espectadores, que imediatamente compactuamos com cada um deles. E sofremos junto.

Mas já vou avisando: aqueles que curtem filmes acelerados e cheios de adrenalina devem passar bem longe deste aqui. Apesar de o enredo sugerir um thriller psicológico bem nervoso, o que temos aqui é um drama muito pesado com situações controladas a conta-gotas. No entanto, Casa de Areia e Névoa não é menos tenso e explosivo do que qualquer fita de suspense ao melhor estilo Seven – Os Sete Crimes Capitais: o que o roteiro de Vadim Perelman faz com o espectador é torturar aos poucos, para dali a um tempo dar o golpe final. E este golpe é o mais chocante possível. Casa de Areia e Névoa trata, acima de tudo, da luta de duas pessoas por aquilo que consideram certo. Mas nem sempre o que é certo para um é também para outro.

Perelman transforma a tela do cinema num ringue, e o espectador se vê convertido em testemunha ocular da degradação moral e física de duas pessoas à beira de um cataclisma. De um lado do ringue, está Kathy Nicolo (Jennifer Connelly). Kathy é uma ex-viciada em álcool e tabaco que sofre para se manter sóbria. É perturbada por crises de depressão, cortesia do chute que levou do namorado, e amarga um bico como faxineira. Passa os dias na cama, sem conseguir se levantar nem mesmo para abrir suas correspondências. Do outro lado do ringue, está Massoud Amir Behrani (Ben Kingsley), ex-coronel da Polícia Secreta do Irã. Behrani, antes rico e poderoso, se viu obrigado a fugir de seu país natal por conta de um problemaço com as autoridades locais, e agora mora nos EUA com a mulher Nadi (Shohreh Aghdashloo) e o filho adolescente Esmail (Jonathan Ahdout), e vive de subempregos para poder manter o alto estilo de vida adquirido no passado. Kathy e Behrani, duas pessoas pisoteadas pela sociedade, que desejam, acima de tudo, viver com um pouco mais de dignidade.

No centro do ringue, um bem material. Por falta de pagamento de impostos – seguido de um erro burocrático -, Kathy é despejada da casa onde mora, herança de seu falecido pai. A garota passa os dias perambulando pelas ruas, dorme em hotéis e, quando o dinheiro acaba, conta somente com seu carro para se proteger do frio e da névoa que assola as noites da cidade. A tal casa vai à leilão e é comprada por 1/4 do que realmente vale. O novo dono da casa é Behrani. Para Kathy, a casa é o único símbolo de redenção e esperança de sobreviver ao passado que quase a destruiu. Para Behrani, é o primeiro sinal da realização do sonho americano de prosperidade e aceitação.

Quando Kathy toma consciência de que o governo não está preocupado em resolver sua questão, decide reaver a casa de qualquer jeito. E Behrani não se intimidará tão facilmente assim. O confronto, que começa pacificamente, se torna mais agressivo à medida que outros personagens entram na história, como o aparentemente tranqüilão policial Lester Burdon (Ron Eldard), que abraça a causa de Kathy com unhas e dentes. A partir daí, não há limites para a crueldade dos personagens.

No que diz respeito ao aspecto técnico, o maior mérito do longa é seu elenco e diretor. As atuações dos protagonistas são arrasadoras. Ben Kingsley (A Lista de Schindler), no papel do rígido Behrani, justifica tranqüilo a indicação ao Oscar, assim como a iraniana Shohreh Aghdashloo – em seu primeiro papel de destaque no cinemão americano -, que tem um trabalho contido, centrado em expressões e principalmente olhares. Ron Eldard (de Navio Fantasma) sofre uma transformação assustadora no decorrer da fita, com um personagem absolutamente ambíguo. Mas o show é de Jennifer Connelly. A belíssima atriz, oscarizada por Uma Mente Brilhante, prova definitivamente que é uma das melhores de sua geração e entrega aquela que talvez seja a atuação definitiva de sua carreira. Simplesmente não há como não torcer por ela em muitos momentos do filme. Isto é evidente principalmente nas cenas em que Connelly divide com Ben Kingsley. Fantástico! Mas nenhum trabalho de ator seria tão completo se não fosse pela direção de Vadim Perelman.

Casa de Areia e Névoa é um trabalho que, acima de tudo, manipula as emoções do público. Por mais que o espectador simpatize com a causa de um personagem e não do outro, o roteiro logo trata de nos colocar em cima do muro: quando pensamos estar do lado de um, logo este comete um ato que nos faz odiá-lo e passar automaticamente para o outro lado. Aqui, não há herói ou vilão, somente dois seres humanos, como eu e você, providos de sentimentos e propensos a cometer erros. Impossível tentar se manter indiferente à disputa. Se alguém aí é do tipo que mergulha de cabeça no filme (como eu) e estiver pensando em se aventurar a embarcar nesta história, deve desde já se preparar para o turbilhão de sentimentos que o filme causará. E duvido que alguém aí consiga manter os nervos no lugar com o trágico e incômodo final. Talvez o que mais incomode, quando saímos da sala de projeção, é ter consciência de que a maior ameaça ao ser humano ainda é ele mesmo.

CURIOSIDADES:

• O escritor Andre Dubus III, autor do livro em que Casa de Areia e Névoa se inspira, chegou a receber mais de 100 propostas de diversos estúdios para ceder os direitos de adaptação da obra para o cinema.

• O papel de Jennifer Connelly foi inicialmente oferecido a Kate Winslet, que não pôde aceitar por estar envolvida nas filmagens de Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças.

• Muitas tomadas sugerem que a ação de Casa de Areia e Névoa se passa na baía de São Francisco. Na verdade, a casa em que grande parte da trama se desenrola fica em Malibu, a quase 400 milhas de distância. Segundo o roteiro, a ação do filme é situada na cidade fictícia de Pacific County, ao norte da Califórnia.

HOUSE OF SAND AND FOG • EUA • 2003
Direção de Vadim Perelman • Roteiro de Vadim Perelman e Shawn Otto
Baseado no livro “House of Sand and Fog”, de Andre Dubus III
Elenco: Jennifer Connelly, Ben Kingsley, Ron Eldard, Frances Fisher, Shohreh Aghdashloo.
126 min. • Distribuição: UIP/DreamWorks SKG.


Guardiões da Noite

31/08/2009

Crítica de Cinema – Texto publicado originalmente em A ARCA, em 16/11/2005.

Guardiões da Noite (Nochnoy Dozor/NightWatch)

Embora eu não estivesse esperando com taaaanta ansiedade assim (pra ser bem sincero, nem me interessei muito), a galerinha d’A ARCA não pensou duas vezes em escolher a minha pessoa para conferir e dar aqui o parecer sobre Guardiões da Noite (Nochnoy Dozor/Night Watch, 2004), superprodução que se tornou um fenômeno lá fora. Sim, sim, é um suspense que envolve vampiros, guerreiros medievais, criaturas esquisitas, seres amaldiçoados e a velha e boa “eterna luta do bem contra o mal” – e que já faturou “dinheiros e mais dinheiros” em diversos países. A questão é que Guardiões da Noite, como todos aí devem saber, é um filme… russo. E quem conhece o cinema russo, sabe que as produções de lá são bem esquisitas. Ninguém melhor que o camaradinha Zarko aqui para falar de um filme bizarro como este, não? :-D

E não é só isto. Guardiões da Noite é o filme russo de maior sucesso em seu país natal, de todos os tempos. Representa também a transposição para as telas de um cultuado romance por lá, Nochnoy Dozor, de Sergei Lukyanenko. E também é a primeira parte de uma saga épica em três volumes que, na Rússia, é constantemente comparada a O Senhor dos Anéis em termos de “importância cultural”. Exagero? Sei lá, não li ainda, como é que eu vou saber, pô? :-D

O que posso dizer com segurança é que a fita decididamente não é para qualquer espécie de público. Aliás, muitos sairão da sala xingando. Cá entre nós? Guardiões da Noite mais decepcionou do que surpreendeu, na boa. Se você viu o trailer, então, nem precisa gastar dinheiro com o ingresso. Já viu todas as partes legais. :-P

O pior é que o enredo é deveras interessante e tinha tudo pra render um pusta filmaço: ao início do longa, descobrimos que, séculos atrás, as facções dos Guerreiros da Luz e dos Guerreiros das Trevas, naturalmente rivais, decidem estabelecer uma trégua. A conclusão a que eles chegam é a de que, caso continuem guerreando, em pouquíssimo tempo não sobrará ninguém para contar história. Assim, os cabeças de cada grupo escolhem uma equipe de humanos dotados de poderes, chamados de “Os Outros”, para vigiar as facções e garantir que ninguém quebre as regras de paz. Esta equipe é batizada de “Os Guardiões da Noite”.

Só que a coisa não é tão simples assim. Uma profecia prevê o nascimento daquele que representará o ser mais poderoso de todos. Este ser, que pode nascer a qualquer momento, colocará um ponto final na trégua ao escolher um dos lados para defender. No meio disto tudo, o atormentado “outro” Anton (o ator Konstantin Khabensky, popularíssimo na Rússia) questiona sua vida ao fazer amizade com um garoto, que talvez seja o escolhido… Bacana, né?

Sim, o enredo é legal. E não é a única qualidade do longa-metragem. O maior atrativo de Guardiões da Noite é, sem dúvidas, seu estilo. A qualidade técnica dos efeitos visuais e da direção do publicitário Timur Bekmambetov são de encher os olhos; simplesmente não dá pra acreditar que a produção consumiu apenas US$ 4 milhões. Mas então… o que deu errado, afinal? Bem, não diria que é uma questão de “algo fedeu”. Só que Guardiões da Noite deixa muito a desejar em comparação ao sucesso todo que fez e ainda está fazendo por aí, embora isto não signifique muito, pois se popularidade fosse sinônimo de qualidade, Titanic não teria rendido sequer dez reais (!).

Curiosamente, o grande defeito da película é exatamente sua maior qualidade: o visual. Por mais que tudo esteja perfeito e bonito, a estrutura de Guardiões da Noite é praticamente uma salada de TODOS os longas de ação, fantasia e ficção-científica que aportaram recentemente nos cinemas. Resultado: a fita perde sua identidade. Os efeitos são tão supervalorizados que o filme morre quando estão somente os personagens e seus diálogos – diálogos tão “profundos”, por sinal, que certos trechos poderiam ter sido reescritos até pelo meu cachorro, pois ninguém ia notar. :-P.

Outras bolas-foras remetem à enorme duração da fita – 20 minutos a menos não fariam mal a ninguém – e a algumas atuações, em especial a do garotinho Dmitry Martynov, intérprete de Yegor, tão talentoso quanto os astros da novelinha mexicana “miguxa” Malhação. Afe! E aquele troço ainda passa, inacreditável como tem gente que consegue assistir! Mas isto é uma outra história, portanto deixemos para lá. :-)

Enfim, Guardiões da Noite é uma produção que até funciona bem. E independente de suas qualidades ou defeitos, não podemos negar que seu apelo popular e seu sucesso lá fora contribuiu e muito para abrir mais uma porta para o cinema estrangeiro em nossas salas. Yeah, russos RULEIAM! Guardiões da Noite deve ser festejado como uma prova incontestável de que tem tudo para competir em pé de igualdade com os gringos quando o assunto é “cinema de qualidade” – embora como “filme” não mereça levar tantos créditos assim. :-P

Para finalizar, só uma pequena dúvida que insiste em permanecer na minha cabeça: Alguém aí também achou a cambalhota do caminhão totalmente exagerada ou foi só eu mesmo?

CURIOSIDADES:

Guardiões da Noite foi o longa escolhido pela Rússia para representar o país na disputa por uma vaga entre os indicados ao Oscar 2005 de Melhor Filme Estrangeiro.

• A segunda parte de Guardiões da Noite, intitulada Day Watch (Dnevnoy Dozor), está em fase de pós-produção e deverá ser lançada comercialmente no Brasil ainda em 2006. A terceira e última parte da trilogia, ainda sem título definido (e que se chama Dusk Watch na literatura), chegará aos cinemas russos em 2007.

• Além do sentido óbvio, o título norte-americano traz também uma referência ao quadro Nightwatch, de Rembrandt, que pode ser visto de relance no apartamento de Anton em uma seqüência do filme.

• A fita utiliza em sua trilha sonora trechos de algumas composições de Hans Zimmer para Gladiador, de Ridley Scott.

NOCHNOY DOZOR • RUS • 2004
Direção de Timur Bekmambetov • Roteiro de Timur Bekmambetov e Laeta Kalogridis
Baseado no livro “Nochnoy Dozor”, de Sergei Lukyanenko
Elenco: Konstantin Khabensky, Vladimir Menshov, Valeri Zolotukhin, Mariya Poroshina, Galina Tyunina, Yuri Kutsenko, Rimma Markova.
114 min. • Distribuição: Fox Searchlight.


Dupla Confusão

31/08/2009

Crítica de Cinema – Texto publicado originalmente em A ARCA, em 14/01/2005.

Dupla Confusão (Tais-Toi!)

Nunca ouviu falar deste filme? Ficou cabreiro com o título meio chumbrega aí em cima? Pois é, eu também. Pra dizer a verdade, à primeira vista, pensei até se tratar de um novo “trabalho” do Renato Aragão ou coisa que o valha. Vai saber, né…

Enfim, a realidade é que o sistema de escolha de títulos aqui no Brasil está dando uma mancada atrás da outra, e muitas vezes tem o poder de assassinar a carreira de um longa-metragem que pode até ser muito bom. Enfim, vi o título e pensei: “Jesus, que raios de filme é esse?”, e fiquei ainda mais preocupado quando soube que tratava-se de uma produção francesa. Ou seja: muitas chances de ser um longa até bacana, mas provavelmente ignorado pelo público. Afinal, todos nós sabemos – é uma realidade, não vamos negar – que determinados países sofrem uma tremenda discriminação aqui no Brasil quando o lance é cinema. Principalmente a França, que ostenta uma fama bem negativa de “só produzir coisa chata” – o que é uma bela de uma mentira, na boa!

Pois é, podemos respirar aliviados: não é nenhuma nova fita do Didi Mocó. E também não é nenhum filme chato e paradão. Dupla Confusão (Tais-Toi!, 2003) é o último longa do aclamado diretor francês Francis Veber (do engraçadíssimo O Closet), uma comédia de ação com muitas cenas bacanas de perseguição, situações engraçadas e dois personagens centrais bastante carismáticos interpretando anti-heróis. Ou seja, tudo aquilo que estamos cansados em ver por aí. Contudo, o único elemento que diferencia esta película de tantas outras é o fato de reunir pela primeira vez dois dos maiores ícones do cinema francês: os ótimos Gérard Depardieu (de Cyrano e Asterix e Obélix Contra César) e Jean Reno (de Imensidão Azul e Missão: Impossível). E este detalhe faz a diferença. Fora isto, é apenas um filme. Simples demais, mas ainda um filme.

O fio de história, que já vimos em quinquilhões de outras produções por aí, é mais ou menos assim: Quentin (Depardieu) é um grandalhão truculento, mas muito irreverente e com um coração de ouro, que é preso depois de um assalto e acaba dividindo a cela com o “homem-de-poucos-amigos” Ruby (Reno). Antes de ser preso, Ruby, um assassino profissional metódico e fechadão, esconde uma fortuna que roubou do perigoso Vogel, responsável pelo assassinato de sua namorada Sandra. Quando Quentin conhece Ruby, rapidamente o toma como amigo – contra a vontade do outro, claro. Numa das cenas mais legais de Dupla Confusão, Ruby consegue escapar da cadeia, e arquiteta um plano engenhoso para recuperar o dinheiro roubado e acabar com a raça de Vogel. O problema é a personalidade meio “estranha” do Quentin, que o seguiu e agora vai fazer de tudo para ajudar o seu mais novo amigo (!).

Aí é que está: o termo ajudar de Quentin, um completo tapado com um talento sobrenatural pra se meter em fria, geralmente significa “botar Ruby nas maiores enrascadas”…

Claro que isto é só o início do filme. Mas também é seu enredo inteiro. Não entendeu? Vou explicar. Esta linha de roteiro termina com mais ou menos meia hora de projeção, e o que se segue é uma sucessão de gags e cenas de ação e pancadaria pra produção de ação nenhuma botar defeito. E dá-lhe cenas muito engraçadas de Quentin soltando asneiras – alguns de seus diálogos beiram mesmo o patético, no bom sentido -, Ruby batendo nos vilões com uma delicadeza de peão de obras e perseguições de carros bem-feitas, com uma ressalva para o impressionante trabalho de edição de som do longa. É quase um típico trabalho de Terence Hill e Bud Spencer (alguém aí lembra destes dois indivíduos?).

Mas não vá esperando um grande trabalho. Mesmo contando com um cineasta muito competente à frente do carro, além dos dois protagonistas talentosos por natureza interpretando personagens que conquistam logo nas primeiras cenas, Dupla Confusão nada mais é do que um entretenimento fast-food. Você assiste, se diverte e esquece que viu. Infelizmente, o carisma de Gérard Depardieu e Jean Reno não são suficientes para tornar este trabalho inesquecível. Se você é daqueles que contam as moedinhas para poder ir ao cinema (o ingresso é caro mesmo!), espere até que Dupla Confusão seja lançado em DVD ou exibido na TV aberta – aliás, parece que a telinha é o verdadeiro lugar deste filme. Agora, se você já viu tudo o que tinha que ver nas telonas e não sabe mais o que fazer nestas férias, vai firme e não esqueça do balde de pipocas.

Ao final, Dupla Confusão não machuca ninguém, mesmo elevando à potência máxima a velha fórmula aperfeiçoada por Máquina Mortífera, dos dois antagonistas que são obrigados a se unir para resolver um problema e acabam se tornando amigos. Mas afinal, como já dizia minha vovó: “Antes uma história velha muito bem contada do que uma nova história mal contada”. E quanto ao fato de ser um autêntico produto francês, esqueça; em alguns momentos, o longa é tão americano que só falta os caras soltarem os diálogos em inglês. Então não tem desculpa, meu chapa! Sim, você já viu este filme antes… Mas se é coisa boa, não faz mal ver de novo, oras! :-D

CURIOSIDADES:

• O diretor Francis Veber já trabalhou com Gérard Depardieu em outros quatro longas-metragens. São eles: La Chèvre (1981), Les Compères (1983), Les Fugitifs (1986) e O Closet (2001).

• Veber ainda é o rei das refilmagens americanas: La Chèvre rendeu a versão intitulada É Pura Sorte (1991), com Martin Short e Danny Glover no elenco; Les Fugitifs gerou o fraquíssimo Os Três Fugitivos (1989), com o mesmo diretor e Nick Nolte como protagonista; Les Compères é a primeira versão de Um Dia, Dois Pais (1997), com Billy Crystal e Robin Williams; já O Closet ganhará uma versão ianque (como sempre…) em 2006 pelas mãos da diretora Gurinder Chadha (de Driblando o Destino).

• Pra terminar, Francis Veber também dirigiu o que é considerado um dos maiores clássicos da comédia francesa: Le Jouet (1976), refilmado em 1982 com o título O Brinquedo – sim, aquele filmaço da sessão-da-tarde com o Richard Pryor! Como roteirista, trabalhou no ótimo A Gaiola dos Loucas (1978). Por sinal, também refilmado. Falei que o homem é mestre nos remakes?

TAIS-TOI! • FRA • 2003
Direção de Francis Veber • Roteiro de Francis Veber
Elenco: Gérard Depardieu, Jean Reno, André Dussollier, Jean-Pierre Malo, Richard Berry, Leonor Varela.
88 min. • Distribuição: Europa Filmes.


MeninaMá.Com

31/08/2009

Crítica de Cinema – Texto publicado originalmente em A ARCA, em 02/09/2006.

MeninaMá.Com (Hard Candy)

“Não é filme cult indie maldito e bastardo não, né? Não é nenhum documentário do Tadjaquistão com sete horas e meia de duração, cheio de paisagens e apenas três diálogos neste meio tempo, né?”. Isto é o que metade dos meus amigos me pergunta quando chega o final de semana e eu saio por aí convidando meio mundo para pegar uma sessão de cinema… hehehe!

O fato é que todo mundo já conhece minha predileção por fitas indie, estrangeiras, não-convencionais, fora do circuitão hollywoodiano. Não que eu não curta cinema-pipoca, muito pelo contrário. Mas inegavelmente tenho uma quedinha por produções menores e bizarras. A razão é que defendo (e isto é fato comprovado) que o cinema independente possui um despojamento e uma liberdade que não existe no cinema padrão de Hollywood; na boa, sem menosprezar os filmes-pipoca, é no circuito alternativo que residem atualmente as melhores histórias, e também é lá que muitos atores sem oportunidades no “esquemão” têm a chance de mostrar a que vieram – e o mais importante, sem gastar muito. ;-)

O elogiadíssimo suspense MeninaMá.Com (Hard Candy, 2005) é uma prova incontestável disso. Dirigido com maestria pelo diretor de videoclipes e estreante na telona David Slade – que por conta deste trabalho, foi convidado para comandar a versão live-action da HQ de horror 30 Dias de Noite -, o longa não precisa de nada além de um único cenário e dois personagens em cena para provar que o resultado positivo de uma produção em termos de qualidade só depende mesmo da boa-vontade de sua equipe e de um roteiro bem escrito em mãos.

Resumindo, aqui aprendemos que, nas mãos das pessoas certas, até uma historinha banal pode gerar um troço de congelar a medula! Definitivamente, o cinema indie tem muito a ensinar. De qualquer forma, MeninaMá.Com é uma fita que jamais conseguiria ver a luz do dia caso fosse planejada em Hollywood. Não, pelo menos, sem ser impiedosamente retalhada pela censura, e não digo isto por ter cenas pesadas aqui. O problema é a história mesmo, que por si só já é bastante nauseante… :-P

Então vamos lá. Ao início do longa, o espectador presencia uma conversa via chat de Internet entre “Thonggrrrl14” e “Lensman319”. Conversinha bem picante, por sinal. A primeira é Hayley Stark (Ellen Page, a Kitty Pryde do último e polêmico X-Men), garotinha de apenas 14 anos; o segundo é o fotógrafo profissional charmosão Jeff Kohlver (Patrick Wilson, o Raoul do chatinho O Fantasma da Ópera), de 32 anos. Os dois, que conversam pela Net há cerca de três semanas, decidem finalmente se conhecer pessoalmente, por sugestão dela. Encontram-se numa cafeteria e descobrem afinidades… Complicado, não? Ainda assim, Jeff insiste que nada pode fazer – mas diz a todo tempo que sofrerá muito e talvez não agüente esperar 4 anos para estar com ela.

Por outro lado, Jeff não oferece muita resistência quando Hayley demonstra grande interesse em ir até a casa dele. E então… CHEGA! Infelizmente, não dá pra contar mais nada da história sem estragar as várias surpresas que seguem por aqui (embora estas surpresas não sejam tão espetacularmente surpreendentes, já digo logo). E acredite, é muita coisa: até a trama chegar neste ponto, se foram apenas 10 minutos de um total de uma hora e 40 de projeção.

O que dá pra dizer sem entregar muita coisa é que o desenrolar de MeninaMá.Com é tenso, beeem tenso. Confinado em um único ambiente, a espetacular casa-saída-de-catálogo-de-revista-de-decoração de Jeff Kohlver, e com apenas dois personagens em cena praticamente o tempo todo, o intrigante roteiro de Brian Nelson – oriundo da TV e roteirista também do futuro 30 Dias de Noite – não perde muito tempo para estabelecer sua trama e, a partir daí, oferece um quebra-cabeça cujas peças são entregues em doses quase homeopáticas – como na cena da cafeteria, onde um pequeno elemento em um canto da tela já dá uma dica violenta do que está por vir. Quem é o vilão, quem é o mocinho? Aqui, nada é o que parece ser. Os fãs de cinema de suspense vão vibrar! :-D

Porém, deve ser dito que a película apóia-se quase integralmente em diálogos. Ação, mesmo, é pouca. Quase não há uso de trilha sonora e a fotografia é a mais tradicional possível – ainda que, em certas seqüências, a direção não resista à tentação de apelar para movimentos de câmera vertiginosos. Enfim, a tensão vem exclusivamente do apavorante embate entre os personagens de Patrick Wilson, ótimo por sinal, e de Ellen Page: pra falar a verdade, até onde possa me lembrar, o último grande confronto entre dois indivíduos confinados num único espaço que vi na telona foi entre James Caan e Kathy Bates em Louca Obsessão (lembra desse fantástico thriller?).

O que não significa, contudo, que não haja momentos de fazer qualquer um arrancar os cabelos aqui. Um destes momentos, a seqüência da “cirurgia”… afe! Junto com a pipoca e o guaraná, é bom comprar um vidrinho de calmantes para a sessão. ;-)

Aliás, um adendo: provavelmente este é o passaporte de Ellen Page ao mainstream hollywoodiano. Sua atuação é coisa de louco e não deve nada ao trabalho de muito veterano prestigiado por aí. Quem lembra dela em X-Men, não tendo muita oportunidade além do “mamãe, veja como sei atravessar paredes”, certamente se impressionará com a qualidade de sua interpretação como a graciosa Hayley. Infelizmente, o que deve ter de ator espalhado em Hollywood que até tem talento, mas não tem como apresentá-lo ao público por conta da preferência dos executivos de estúdios por “rostinhos bonitos e inexpressivos”… :'(

Pra mim, pessoalmente, só foi uma pena a personagem de Sandra Oh (de Sideways – Entre Umas e Outras), que é uma atriz que gosto muito, ter tão pouco tempo em cena. Ela aparece apenas duas vezes, que juntas não somam cinco minutos. Mas enfim, o enredo não tinha mesmo espaço para ela.

Num saldo geral, MeninaMá.Com é um trabalho que merece encontrar seu público, e que representa em toda sua projeção o fato de que um bom cinema não é feito de cenários arrojados, efeitos especiais megalomaníacos e uma verba gigantesca. E também serve para provar que, ao contrário do que o Professor Xavier sempre pregou, o General Stryker é que estava certo: os mutantes realmente podem ser muito perigosos! Hehehe!

E não se preocupe: este filme não é um documentário, não foi rodado no Tadjaquistão, não tem sete horas e meia de duração, não é cheio de paisagens e não tem apenas três diálogos. :-)

CURIOSIDADES:

• O título original do filme, Hard Candy, é uma referência a uma gíria gringa de Internet para garotas menores de idade.

• Ellen Page conseguiu o papel de Hayley ao aparecer no teste com o cabelo curtinho, ao estilo Joãozinho; o corte era uma exigência de um longa-metragem na qual Page atuou na época dos testes – e, ela não sabia, também era uma preferência do diretor de MeninaMá.Com.

MeninaMá.Com foi rodado em apenas 18 dias, nos arredores de Los Angeles. Em 2005, a fita faturou três prêmios no Festival de Sitges, na Espanha, um dos mais conceituados festivais de cinema de suspense e horror. Os prêmios foram de Melhor Filme, Melhor Roteiro e Melhor Filme pela Escolha da Audiência; no ano anterior, o grande vencedor foi Oldboy, de Chan-wook Park.

MOMENTO SPOILER (leia por sua conta e risco): A inspiração para a história de MeninaMá.Com veio do Japão. O produtor David Higgins decidiu sugerir o projeto ao roteirista Brian Nelson após ler uma reportagem sobre um grupo de estudantes japonesas menores de idade que teclavam com pedófilos na Internet e, em seguida, armavam tocaias para mandá-los à prisão ou, em alguns casos, matá-los. Literalmente justiça com as próprias mãos! :-P

HARD CANDY • EUA • 2005
Direção de David Slade • Roteiro de Brian Nelson
Elenco: Patrick Wilson, Ellen Page, Sandra Oh, Jennifer Holmes, Gilbert John.
103 min. • Distribuição: Paris Filmes.


Sideways – Entre Umas e Outras

29/08/2009

Crítica de Cinema – Texto publicado originalmente em A ARCA, em 08/11/2004.

Sideways - Entre Umas e Outras

Alguns filmes, por mais simples que sejam em questão de enredo, cenários e efeitos visuais, têm os culhões de mexer com o público. Aliás, alguns não precisam de nada disso, só mesmo daquela velha ideologia imortalizada pelo cineasta brazuca Glauber Rocha, “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”. Os filmes de Alexander Payne são assim. O cineasta norte-americano não utiliza nenhuma técnica inovadora e raramente faz uso de algum grande astro em suas produções, e mesmo assim só faz filmão. Uma pena que seus trabalhos não conseguem atingir metade do público que mereciam por conta disso.

Acostumado a dissecar temas polêmicos e universais com roteiros aparentemente simplistas e cômicos, Alexander Payne já virou de cabeça pra baixo a vida de Laura Dern no meio de uma discussão pró e anti-aborto (Ruth em Questão, 1996), botou Matthew Broderick e Reese Whiterspoon em pé de guerra por conta de uma campanha política-escolar (Eleição, 1999) e desenvolveu uma insólita amizade entre Jack Nicholson e um menino órfão da Tanzânia (As Confissões de Schmidt, 2002). Em Sideways – Entre Umas e Outras (Sideways, 2004), seu novo trabalho, o roteiro de Payne – escrito em parceria com Jim Taylor, seu colaborador habitual – não traz nenhum enredo subliminar. Ao contrário, é a história mais simples e direta que o diretor nos traz. E provavelmente, seu melhor filme. Talvez, digo numa boa, um dos melhores filmes do ano.

Em Sideways, não há exatamente uma história com começo, meio e fim. Há uma situação corriqueira e absurdamente comum que serve de palco para a dissertação de uma amizade regada violentamente a sonhos dilacerados, solidão, desilusões e… vinho tinto e branco. Logo no início do longa, somos apresentados a Miles (Paul Giamatti, excelente) e Jack (Thomas Haden Church). Miles é um fracassado e recém-divorciado professor de língua inglesa em um colégio secundário em Los Angeles, e Jack é um ex-galã da TV e atualmente ator de comerciais. Os dois são grandes amigos, mas os caminhos da carreira e da vida pessoal de cada um tomaram rumos muito diferentes, causando um distanciamento considerável.

Logo nas primeiras cenas de Sideways, Miles e Jack embarcam numa viagem de carro. O destino é a pequena cidade de Santa Ynez, na Califórnia, conhecida nos states como a “capital do vinho”. Para cada um, o passeio tem um significado: Miles é um expert em vinhos, capaz de relacionar os ingredientes e até o ano de fabricação apenas pelo seu aroma, e quer tentar relaxar um pouco enquanto não recebe uma resposta de uma editora que pode vir ou não a publicar seu primeiro (e enorme) romance; Jack se casará na semana seguinte, e acredita que a viagem é a oportunidade ideal para viver intensamente seus últimos sete dias de solteiro (leia-se: o cara quer transar com a primeira garota que aparecer em sua frente). Acima de tudo, ambos querem reanimar a amizade meio que esfriada com o tempo.

Até os primeiros trinta minutos do filme, a rotina de Miles e Jack segue sem grandes novidades, com visitas às mais belas paisagens de plantações de uva e informações técnicas para a fabricação de um bom vinho. As primeiras mudanças acontecem com a chegada em Santa Ynez: Miles reencontra uma velha amiga, a garçonete Maya (a belíssima Virginia Madsen), agora uma especialista em vinhos, e descobre que nutre por ela muito mais do que uma mera amizade, mas é covarde demais pra cutucar este sentimento; e Jack conhece e se sente imediatamente atraído pela provadora e mãe solteira Stephanie (Sandra Oh), com quem acaba tendo um “rolinho” – sem que ela tome conhecimento, óbvio, de que o cara está preste a ser “encoleirado”.

A amizade entre Miles e Jack é posta em cheque quando o segundo revela ao primeiro que tenciona desistir do casamento… faltando três dias para o enlace. O passeio de sete dias, que deveria ser apenas um entretenimento para esfriar a cabeça, detona uma bela duma crise de meia-idade em ambos, e termina por se tornar uma viagem de auto-conhecimento e auto-análise tanto para o escritor quanto para o ator – e para a platéia, também!

Já que tudo é tão simples, o que há, afinal, de tão especial assim em Sideways? Bem, o roteiro é um primor em diálogos ácidos e cômicos e situações bem amarradas. Ajuda, e muito, as atuações inspiradíssimas do quarteto central. O trajeto de Miles e Jack acaba se tornando universal: não é difícil o público se identificar com qualquer uma das situações pelo qual as personagens passam. E a trilha sonora fantástica do inglês Rolfe Kent (de Sexta-Feira Muito Louca) vai parar na estante de muita gente, inclusive da minha, na ocasião do lançamento em CD, cortesia das deliciosas melodias que rolam ao fundo de quase 100% da fita.

Mas talvez o grande trunfo de Sideways seja a facilidade que possui em retratar o típico “gente como a gente” e dizer muito com tão pouco: o longa emociona, diverte, inspira e deixa o espectador com um belo de um sorriso no rosto ao final da sessão. E tudo isso com atores de verdade no lugar de astros, sem a necessidade de efeitos visuais ou pirotecnia, e despejando na telona casos comuns, com pessoas comuns, que poderiam ser qualquer um de nós. E quando chega a tão esperada segunda chance para as personagens, é confortante saber que nós também podemos ter a nossa segunda chance. Basta se mexer pra isto. :-)

CURIOSIDADES:

• Paul Giamatti iniciou sua carreira em 1990 e já possui mais de 40 filmes em seu currículo. O ator participou de O Mundo de Andy, de Milos Forman, aquele que conta a história de Andy Kaufman. Mas seu nome não consta nos créditos. Ele faz o papel do alter-ego de Andy, o insuportável Tony Clifton. Seu nome consta nos créditos do longa como Tony Clifton mesmo – uma brincadeira com a mania de Kaufman em afirmar que Clifton, no caso ele mesmo, era uma pessoa à parte.

• Os vinhos citados ao longo da projeção de Sideways são raríssimos e fazem parte da coleção pessoal de Alexander Payne que, assim como o personagem Miles, também é um amante inveterado desta espécie de bebida.

• As magníficas ilustrações que enfeitam tanto o cartaz original quanto o site oficial são assinadas pelo conceituado artista Robert Neubecker, cujo trabalho é freqüentemente usado por megaempresas como Microsoft, NYTimes, Disney, Citibank, entre outras.

SIDEWAYS • EUA • 2004
Direção de Alexander Payne • Roteiro de Alexander Payne e Jim Taylor
Baseado no livro de Rex Pickett
Elenco: Paul Giamatti, Thomas Haden Church, Virginia Madsen, Sandra Oh.
123 min. • Distribuição: Fox Searchlight.


A Lula e a Baleia

29/08/2009

Crítica de Cinema – Texto publicado originalmente em A ARCA, em 16/01/2006.

A Lula e a Baleia (The Squid and the Whale)

O dicionário Aurélio define o termo filisteu como uma forma de se referir a “indivíduos de espírito vulgar”. Para o escritor fracassado e agora professor de literatura Bernard Berkman, filisteu é aquele ser desafortunado que não se interessa por livros e muito menos por filmes, conforme explica para seu filho Frank. Bernard acredita que o mundo é dividido por filisteus e não-filisteus, e seria bom se os representantes da segunda categoria evitassem se envolver com os integrantes da primeira, seres desmerecedores de crédito e inferiores por natureza – linha de raciocínio bem pejorativa, por sinal. Mesmo sendo apenas um mero pré-adolescente, Frank percebe a irracionalidade e a prepotência do pensamento de Bernard e não tarda a rebater: se ser um não-filisteu implica em seguir os ideais do pai, ele prefere ser um filisteu.

A meu ver, gostar ou não gostar de A Lula e a Baleia (The Squid and the Whale, 2005), drama autobiográfico escrito e dirigido por Noah Baumbach – mais conhecido como o co-roteirista de A Vida Marinha com Steve Zissou, de Wes Anderson –, envolve um pouco deste lance de ser ou não um “filisteu”. Como sabemos, grande parte do público que freqüenta os cinemas não é muito chegado em produções-cabeça, preferindo fitas mais comerciais e de melhor digestão. Sem qualquer traço de dúvida, este público certamente ODIARÁ A Lula e a Baleia com todas as forças. Não que importe muito, já que é visível que Noah Baumbach não fez este filme para agradar a todo mundo ou a platéias específicas. Na verdade, Baumbach criou A Lula e a Baleia apenas para uma pessoa: ele mesmo. :-)

O que acontece é o seguinte: as características de A Lula e a Baleia, que narra um período complicado da adolescência do próprio diretor, são bem peculiares. Seu fantástico roteiro, assim como o desenrolar das situações vividas pelos personagens, é quase totalmente linear, sem grandes tragédias ou mudanças muito bruscas de comportamento; os protagonistas não carregam nenhum atrativo especial – são pessoas comuns, tão comuns que beiram o banal; e a produção não se preocupa, em momento algum, em situar o espectador ou contar uma trama com começo, meio e fim. É como se alguém ligasse uma câmera de vídeo em uma casa de uma família qualquer, e desligasse depois de algumas horas, sem apresentar ninguém, sem explicar nada. Apenas captando imagens e deixando que elas falem por si só.

A família retratada aqui vive no Brooklyn de 1986 e é formada por quatro pessoas: Bernard (Jeff Daniels, As Horas), o pai; Joan (Laura Linney, O Show de Truman), a mãe; Walt (Jesse Eisenberg, Amaldiçoados), o primogênito; e Frank (Owen Kline), o caçula. Bernard tenta voltar a escrever, mas não consegue impedir a chegada de um indesejado bloqueio criativo. Joan, que foi dona-de-casa por toda sua vida, decide também ingressar na literatura e, logo de cara, revela um talento nato que rende frutos muito bem-sucedidos, algo que Bernard jamais conseguiu. Walt gostaria de seguir os passos do pai – e para mostrar que tem “potencial”, interpreta a quem quiser ouvir um dos maiores clássicos do Pink Floyd, Hey You, como se fosse de sua autoria. Frank, de espírito rebelde, rejeita o lado cult da família e prefere tentar investir em sua futura carreira de tenista profissional.

Nos primeiros 15 minutos de projeção, o casal Berkman anuncia aos filhos que finalmente se separará. A notícia cai como uma bomba na cabeça dos garotos. Walt toma partido do pai ao descobrir que a mãe fora infiel, e Frank defende Joan, apenas por ser consciente de que jamais será o modelo de filho que Bernard espera que seja, o que o torna um rejeitado aos olhos do pai. Walt e Frank não fazem idéia de como lidarão com sua nova rotina, já que morarão três dias e meio com o pai e três dias e meio com a mãe a cada semana…

Surgem problemas: o mais velho, mesmo namorando uma amiga de escola, apaixona-se pela nova namorada do pai, a sensual Lili (Anna Paquin, nossa gloriosa Vampira da trilogia X-Men), que por sinal é aluna dele; já o mais novo gruda no único sujeito que lhe demonstra um mínimo de afeto paterno, o namorado da mãe, o professor de tênis Ivan (William Baldwin). Não só isso: o moleque enfia-se na bebida (?) e torna-se obcecado por suas recentes descobertas sexuais, masturbando-se por todos os cantos da escola e espalhando o “resultado do ato” nos livros da biblioteca e nos armários dos alunos (!?!?).

Claro que Walt e Frank amadurecerão rapidamente, sofrerão uma série de golpes dolorosos e aprenderão algumas coisas sobre a vida… :-)

E por qual razão um longa tão simples como este não agradaria ao público médio, mesmo com um ótimo roteiro e atores tão bons? O caso é que A Lula e a Baleia não é tão fácil assim de digerir. A fita é recheadíssima de metáforas e piadas sutis nas entrelinhas, e as zilhões de referências a ícones da cultura pop, que vão de personalidades literárias como John Updike e J. D. Salinger até cineastas como François Truffaut, certamente passarão despercebidas. Sua narrativa é simplista, direta, parada, quase teatral, focada apenas no delicado e impetuoso desempenho de seus atores. Não há um mínimo de “ação” no sentido literal da palavra, nem mesmo na construção dos personagens. Ou seja: elementos de sobra para espantar muita gente. :-D

Por outro lado, nada disto importa. Ser um “filme-padrão” não é nem de longe a proposta de A Lula e a Baleia – e este é o grande charme da película. A Lula e a Baleia nada mais é do que a forma que Noah Baumbach encontrou para revisitar sua juventude e exorcizar seus fantasmas. Como conseqüência, entregou um grande trabalho, muito bem dirigido, magnificamente interpretado – o elenco é um show à parte, com destaque para Jeff Daniels, perfeito, e para o brilhante estreante Owen Kline – e com uma deliciosa cara de final dos anos 60/início dos anos 70, tanto na montagem, como no enquadramento de cenas e também na trilha sonora.

Então, A Lula e a Baleia é mesmo BOM? Bem, é uma rua de duas mãos. Você pode adorar ou odiar (e pra mim, particularmente, já é presença certa na futura listinha dos 10 melhores do ano), mas isto está diretamente ligado ao seu, digamos, “posicionamento” com relação ao lance pregado pelo patriarca do clã Berkman. Preferências à parte, é uma produção que, assim como o sublime Hora de Voltar, tem como principal trunfo ser absolutamente SINCERO. E este pequeno detalhe certamente quebrará as pernas de qualquer um. Seja você filisteu ou não. :-)

CURIOSIDADES:

• O roteiro de A Lula e a Baleia está pronto desde 1999. Laura Linney recebeu uma cópia das mãos de Eric Stoltz em 2000, durante as filmagens do drama de época A Essência da Paixão. Ela concordou em atuar no futuro longa imediatamente.

• Um dos pontos altos da película corresponde à atuação do excelente Owen Kline, intérprete de Frank. O garoto, de 15 anos, é filho de Kevin Kline e Phoebe Cates (a mocinha de Gremlins). Owen também escreve e desenha graphic novels, e possui um talento que eu queria ter a todo custo: ele tira de ouvido toda a discografia de Bob Dylan no ukelele. Uau! Eu quero este moleque como meu irmão mais novo. :-D

A Lula e a Baleia foi rodado em 23 dias.

• A trilha sonora do longa-metragem (desde já, obrigatória na prateleira de qualquer fã de folk music) ressuscitou dois grandes nomes da música sessentista: Bert Jansch e Loudon Wainwright III. Este último encerra o filme com a belíssima The Swimming Song, que rola na fita apenas nos créditos finais, depois da desconcertante Street Hassle, de Lou Reed.

• Sim, há um significado para a tal da lula e a tal da baleia do título do filme. Aliás, dois significados: um físico e outro totalmente metafórico. Mas é óbvio que não entregarei o jogo aqui, né? ;-)

THE SQUID AND THE WHALE • EUA • 2005
Direção de Noah Baumbach • Roteiro de Noah Baumbach
Elenco: Jeff Daniels, Laura Linney, Jesse Eisenberg, Owen Kline, Halley Feiffer, Anna Paquin, William Baldwin.
81 min. • Distribuição: Columbia.