Whiplash: Em Busca da Perfeição

30/08/2015

Crítica de Cinema – Texto publicado originalmente no Judão, em 09/01/2015.

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Em um bate-papo de mesa de bar, Terence Fletcher (J.K. Simmons) conta a Andrew Nieman (Miles Teller) a breve história de um aspirante a saxofonista que errou algumas notas em um concerto e viu seu mentor tacar-lhe um chimbal em sua direção por conta deste erro. Debaixo de risos da platéia, o músico voltou pra casa e chorou durante toda a noite; acordou na manhã seguinte disposto a praticar violentamente, porque prometeu a si mesmo jamais ser motivo de risadas novamente. Um ano depois, este músico iniciante, Charlie Parker, já era aclamado mundialmente como “o melhor saxofonista de todos os tempos”, ganhou o notório apelido de “Bird” e hoje, 60 anos após sua morte, ainda é lembrado e ovacionado por qualquer especialista em jazz.

A história de como Bird tornou-se Bird (retratado no igualmente surpreendente filme de Clint Eastwood com Forest Whitaker) é um resumo direto ao ponto do visceral e claustrofóbico Whiplash: Em Busca da Perfeição (Whiplash, 2014), segundo longa do promissor Damien Chazelle e vencedor da última edição do festival de Sundance. Inspirado nas experiências pessoais de Chazelle como baterista na escola, Whiplash (referência à música de mesmo nome composta pelo saxofonista Hank Levy) o filme trata de um lado muito comum do jazz contemporâneo, talvez pouco conhecido do público, essa “busca pela perfeição” que o subtítulo brazuca sugere. Treinar, treinar, se arrebentar até encontrar o acorde perfeito. Os fins justificam os meios? Até que ponto somos capazes de suportar horrores para chegarmos onde queremos chegar, para sermos lembrados por gerações, para nos tornarmos um Charlie Parker?

Até esta conversa de mesa de bar que eu mencionei no começo do texto, Nieman, jovem recém-chegado ao Conservatório Shaffer, considerada a melhor universidade de música dos Estados Unidos, já terá descoberto a resposta a estas perguntas na raça. Vindo de uma família sem grandes nomes, vivendo à sombra do fracasso do pai (Paul Reiser) e sedento de vontade de ser um grande baterista, Nieman logo é notado por Fletcher, o mais respeitado e temido professor de Shaffer. Quando o jovem músico torna-se integrante da banda oficial do Conservatório, banda esta na qual Fletcher é o maestro, o pesadelo começa: dono de métodos bastante agressivos, Fletcher não medirá esforços, palavras e ações para transformar Nieman em seu Charlie Parker pessoal. E dá-lhe suor, (muita) humilhação, (muito) sangue e uma ou outra lágrima até que isto aconteça – se é que pode acontecer.

Whiplash é um daqueles trabalhos miraculosos, que aparecem de tempos em tempos, com um suposto fiapinho de enredo que, na prática, apresenta um mar de possibilidades. A sinopse pode até sugerir um filme sobre um “embate entre aluno e professor”, mas estamos falando de muito mais do que isso. Logo de cara, já é possível entender que Andrew Nieman é alguém preparado para sacrificar o que for preciso para atingir seu objetivo – em dado momento, o personagem discute abertamente o conforto que sente em não ter amigos, já que amigos podem ser empecilhos no que tange à sua disciplina. Em outro momento, explica com uma conformidade absurda que não namora porque sabe que dormirá com a namorada pensando na bateria. “Prefiro morrer falido aos 34 anos e ser tópico de uma conversa do que chegar milionário aos 90 anos sem ser lembrado por ninguém”, conclui.

Nada, porém, poderia prepará-lo para o diabólico Terence Fletcher. Um homem capaz de questionar seus alunos sobre seus traumas de infância somente para usar estes traumas a seu favor durante um ensaio. Um homem capaz de humilhar seus alunos e forçá-los a tocar por horas e horas e horas, até banhar os instrumentos a sangue (algo que acontece, por sinal, em vários momentos da fita). Um homem capaz de jogar um “foda-se” na cara de um aluno que chegou atrasado e seriamente machucado a um ensaio, porque acabara de sofrer um acidente de carro. Um homem que defende abertamente que só o esforço desmedido é capaz de criar um mito, e só a raiva alimenta o esforço. Os fins justificam os meios?

A obsessão destes dois personagens, em criar uma lenda e em ser esta lenda, e os consequentes duelos psicológicos (e verbais e às vezes até físicos) oriundos desta obsessão, gerarão momentos memoráveis durante a curta duração do filme. E quantas vezes, afinal, já quisemos ser melhores no nosso trabalho só pra esfregar na cara do chefe que somos capazes?

J.K. Simmons, por sinal, é o grande catalisador de Whiplash. Embora Miles Teller tenha uma atuação bastante contundente, definitivamente não é possível olhar em outra direção quando o sádico Simmons está em cena, espumando e destruindo tudo à sua volta. O personagem é tão cheio de camadas que somos incapazes de entender suas reais intenções ao longo da fita. Posso dizer que Simmons habitará todos os meus pesadelos nos próximos dias.

Whiplash é bastante correto tecnicamente falando e não traz grandes novidades ao modus operandi de um filme deste gênero. A força, de fato, está nos personagens, magistralmente construídos e interpretados, no excepcional domínio de cena do diretor Damien Chazelle (mais filmes, por favor!) e na mensagem de sua trama, que não só pontua a necessidade de entrega total quando se objetiva ser grande, mas também nos lembra a todo momento que, mesmo com muito suor e sangue derramado, talvez nem todos consigam fugir do ostracismo.

Somos a todo instante obrigados a confrontar esta realidade: ter o nome gravado na história é para poucos, e certamente muitos de nós veremos, com o tempo, nossos sonhos morrerem para dar lugar a uma mesa de escritório, um trabalho burocrático e o puro anonimato – embora seja fácil ter um pouco de esperança no momento em que Andrew Neiman, sem largar as baquetas e mesmo com as mãos em carne viva, arranca um sorriso bem discreto, de canto de boca, do rosto do implacável Terence Fletcher.

Resta saber se Damien Chazelle, que provou ter potencial para ser grande com este seu magnífico trabalho, será um Charlie Parker no futuro. A platéia ele já tem.

WHIPLASH • EUA • 2014
Direção de Damien Chazelle • Roteiro de Damien Chazelle
Elenco: Miles Teller, J. K. Simmons, Paul Reiser, Melissa Benoist, Austin Stowell.
107 min. • Distribuição: Columbia/Sony.


O Pequenino

30/08/2015

Crítica de Cinema – Texto publicado originalmente em A-ARCA, em 20/09/2006.

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N. do E.: O texto a seguir é uma reprodução fiel de uma carta escrita de próprio punho pelo colunista Zarko, que sofreu uma espécie de estafa e encontra-se internado por tempo indeterminado em uma clínica de repouso em uma cidade do interior paulista, que preferimos não citar para preservar sua privacidade. Alguns trechos foram omitidos por causa de rasuras que impediram uma melhor compreensão do conteúdo da carta.

Caros El Cid, Fanboy e R.Pichuebas:

Antes de mais nada, espero que esteja tudo muito, mas muito bem com vocês. Porque comigo não está. Nem um pouco. Depois de mais ou menos quatro ou cinco dias desacordado (ao menos acho que foi isso), finalmente consigo levantar um pouco desta cama e ver a luz do dia. Não sei exatamente onde estou, já que ninguém quer me dizer. Mas sei que é um lugar bastante agradável, cheio de pessoas simpáticas e prestativas vestidas de branco e com um jardim florido a perder de vista. Acho que é uma fazenda ou uma chácara, pelo menos é o que consigo ver da janela deste cômodo, já que as pessoas simpáticas e prestativas vestidas de branco, quando se aproximam (não sei porquê, mas tenho a sensação de que elas têm medo de mim), dizem que por enquanto não posso sair do quarto. É tudo para o meu próprio bem, falam o tempo todo.

Como não ouço barulho de carros, acho que devo estar muito afastado da cidade. E pra falar a verdade, mesmo imaginando o que é este lugar, não entendo a razão de tanta cautela, como as grades na janela, a porta do meu quarto sempre trancada e os vários remédios diários que a menina simpática e prestativa vestida de branco traz (mal sabe ela que finjo que tomo tudo e escondo todos os comprimidos… hóhóhó). Sou praticamente um Alex DeLarge aqui dentro! Daqui a pouco vão trocar meu nome por um número.

Enfim, digo que espero que esteja tudo bem com vocês agora porque, quando eu conseguir sair daqui, NADA ficará bem para os seus respectivos lados. Afinal, quando eu consigo me convencer de que As Aventuras de Shark Boy e Lava Girl em 3D foi o máximo de crueldade ao qual vocês me expuseram, vocês chegam e se superam em seus desejos mórbidos de tortura para com a minha pessoa. Sim, estou falando de O Pequenino (Little Man, 2006), aquela coisa horrorosa dirigida pelos infames Irmãos Wayans após seu grande sucesso As Branquelas. Sim, sim, todo mundo sabia que aquilo ali seria, na melhor das hipóteses, uma fitinha chulé e equivocada. Mas ninguém poderia imaginar que eu surtaria com tanta violência e tanta intensidade como surtei desta vez…

Bem, pra falar a verdade, nem eu sei o que exatamente aconteceu, pois lembro que fui enviado à sessão de imprensa e, quando o filme acabou, eu apaguei junto (!). O que sei (pelo menos é o que contou o bondoso homem bigodudo que dá ordens às pessoas simpáticas e prestativas vestidas de branco) é que, aparentemente, tive convulsões e tentei me atirar à frente de alguns ônibus que transitavam numa grande avenida de São Paulo – acho que o lance foi pior, do contrário não haveriam justificativas para estas ataduras enroladas em meus pulsos. Pelo visto, o troço todo foi bem brabo!

Então, vamos logo ao que interessa: esta carta é apenas para declarar minhas opiniões a respeito de O Pequenino. Embora vocês definitivamente não mereçam minha consideração, decidi não deixá-los na mão com esta crítica. Logo, vou redigir aqui rapidamente minhas impressões e então façam o que quiser. Mas falo de imediato que só faço isto em respeito aos leitores daquele emprego tortuoso website chamado A ARCA, da qual vocês são os cabeças. E também faço isto por conselho da simpática senhora que vem conversar comigo uma vez por dia, que acredita que eu devo “enfrentar meus fantasmas”, em suas próprias palavras.

A história, acho que todo mundo já sabe: temos um bandidão chamado Calvin, vivido por Marlon Wayans (na verdade, só o seu rosto inserido em um corpo de criança através de uma montagem bem porquinha), que acabou de sair da prisão. Ele é temidíssimo, ainda que seja menor do que um anão (!). E o cara está decidido a largar a vida de crimes, mas antes almeja roubar uma joalheria, mais exatamente um diamante, a mando de um mafioso (o que raios o Chazz Palminteri está fazendo aqui?). Por sinal, a execução do roubo é incrivelmente absurda e rende uma (das muitas) piada ruinzinha e sem sentido, envolvendo uma vendedora que se “adapta” a seus clientes… Ugh! Voltando, o plano dá errado por causa do cachorrinho de uma dondoca e, durante o roubo, o anão-de-jardim e seu comparsa boboca (sempre há um comparsa boboca…) são perseguidos pela polícia. Óbvio que isto aconteceria, mas tudo bem!

Em paralelo a esta historinha, conhecemos um mané fracassado chamado Darryl, “interpretado” (cof cof) por Shawn Wayans, que quer ter um filho com sua esposa, que por sua vez não quer nem saber de crianças e prefere investir em sua promissora carreira de… bem, ela tem uma carreira, ainda que o filme nunca diga qual é (segundo a sinopse da distribuidora, é algo relacionado a publicidade). Pois bem, o figura insiste em querer ser pai, mas esbarra na resistência da moçoila e nos problemas com o pai dela (John Witherspoon, que NÃO É PARENTE da Reese, tá?), que parece estar caducando. Bem, uma prova concreta de que o indivíduo está ficando lelé é ter topado participar desta coisa, e um exemplo disso encontra-se em seus primeiros, terríveis e inexplicáveis diálogos–

(N. do E.: em seguida a este parágrafo, há um trecho composto de palavras de baixo calão impronunciáveis, que preferimos não reproduzir aqui).

As duas historinhas se encontram quando, encurralado em uma loja de conveniência, o bandidinho disfarçadamente joga o diamante dentro da bolsa da mulher. Ao descobrir onde o casalzinho mora e ao tomar ciência da vontade de Darryl em ser papai, Calvin disfarça-se de bebê abandonado para entrar na casa dos pombinhos e reaver sua pedrinha preciosa antes que o mafiosão mande cortar sua cabeça. E a partir daí, todo mundo já sabe o que vai acontecer. Nossa, que original este roteiro! Céus! Alguém por favor cancele o próximo Oscar e mande entregar a estatueta na mansão dos Wayans, pelo amor de Deus!

Bom, só mesmo alguém com “pobrema” (quem tem um “pobrema” tem dois, já dizia o ditado) para não perceber que aquela criatura bizarra que mais parece um parente próximo do Chucky não é uma criança, já começa por aí. E se este bebê parasse na porta da minha casa, minha primeira reação seria jogá-la na porta do vizinho! Hehehe. Mas se analisarmos todas as incoerências do enredo, esta carta precisaria de mais oito folhas, no mínimo, então deixa pra lá.

Ok, ainda que o enredo não seja um primor, até que arriscaria virar um filminho daqueles bem descartáveis, que você assiste, dá risada e esquece depois de cinco minutos. Mas este, infelizmente, não é o caso. Assim como o resto da notória filmografia dos Wayans (nunca a palavra “resto” soou tão verdadeira…), O Pequenino deixa de ser uma comédia rasteira para transformar-se num interminável desfile de piadas sujas, gratuitas, desnecessárias, sem graça e, no caso de algumas, até ofensivas. O nível aqui é de um Coisa de Mulher, vai vendo bem.

Ou vocês realmente conseguem rir de um marmanjão esmurrando criancinhas de no máximo cinco anos durante uma partidinha de futebol americano? Ou de um policial que captura um suposto marginal só por ser negro e é advertido por outro que diz “Ei, não é nosso homem, estamos procurando alguém de cor café com leite e este aí está mais para descafeinado”? E o bebêzão esfregando um biscoito em suas partes baixas antes de oferecê-lo ao seu “vovô”? E de um cara dizendo ao seu sogro, “para sua informação, eu coloco a vara na sua filha toda noite”? E da “mamãe” que começa a brincar de assoprar a barriga do “bebê” para, em seguida, se ver sendo quase forçada a aplicar-lhe sexo oral? Isso é MUITO pra minha cabeça. Nem mesmo o Zorra Total apela tanto.

Isto, para não comentar as piadinhas fáceis de praxe, como aquela em que Calvin aproveita-se de sua condição de “bebê” para “tomar leite” de uma boazuda… ou aquela em que Darryl e Vanessa vão trocar a fralda dele e dão de cara com algo bem “anormal”… ou aquela na qual os “pais” da criança tentam tirar sua temperatura com um termômetro no esfíncter… ou aquela do “banho com o papai”… e por aí vai. E o mais bizarro é que o filme esquece de todas as podreiras despejadas na cara do público durante a projeção para entregar um final tão carregado na melação quanto as fitas juvenis da Disney… cruzes!!!

Ou seja: quando não são situações extremamente grotescas, são tiradinhas que até poderiam ser engraçadinhas se a direção soubesse o que é TIMING.

Deixando esse lance das piadinhas imbecis de lado, sobra… o resto da película, que não acrescenta nada às nossas existências miseráveis. Só o que aprendemos é que Keenen Ivory Wayans é indubitavelmente um PÉSSIMO diretor e traz consigo um time de PÉSSIMOS roteiristas (jura que eles precisaram de TRÊS roteiristas para escrever isso???) e um time de atores PIOR ainda! Não dá nem pra acreditar, por exemplo, que a tal da Vanessa, a esposa de Darryl, é vivida por Kerry Washington, atriz que recentemente defendeu com muita competência um dos personagens mais importantes de Ray.

No caso dos outros… perda total na certa, principalmente quando estamos falando do tenebroso John Witherspoon e das duas pontinhas de dois dos piores comediantes em atividade nos EUA, Molly Shannon (como uma motorista maluca) e… Rob Schneider, como um dinossauro de animação de festa infantil. Sim, o Schneider está no filme.

Bem, o problema todo de O Pequenino não está nas piadas em si – ou pelo menos em algumas delas, já que a maioria é fraca mesmo. O caso é aquela velha mania de achar que o público só gosta de humor de baixo calão. E aqui, o nível é tão baixo que dá vontade de caçar os executivos de Hollywood que liberaram esta coisa só para dizer pessoalmente que as pessoas que freqüentam as salas de cinema não são tão tebas quanto pensam. Provavelmente é o que eles devem achar, para viabilizar uma fitinha tão medonha quanto esta. Afinal, até pra fazer “humor de banheiro” é necessário um mínimo de talento e inspiração. Se vocês não se importam em ver um filmeco duvidar de sua inteligência, vão fundo e arquem com as devastadoras conseqüências!

Antes de finalizar esta carta, peço desculpas pela letra meio tremida e quero deixá-los despreocupados com relação a meu destino. Sabe lá quando conseguirei sair deste lugar, mas o bondoso homem bigodudo que vez por outra aparece aqui para tirar minha pressão disse que, se eu me comportar e não mais tentar furar meus olhos com minhas chaves ou morder minha língua até sangrar, estarei a caminho de casa em no máximo algumas semanas. Por outro lado, não pretendo abandonar este glorioso website nerd, até mesmo porque preciso do meu salário para poder me alimentar. Portanto, respirem aliviados. Mas tenham a mais absoluta certeza de que a conta irá para as suas mesas, afinal, já que vocês me puseram nesta posição, nada mais justo, não é mesmo?

Ah sim. E por favor, sequer pensem em me visitar. O bondoso homem bigodudo diz que não estou preparado para tanta emoção, logo, pode ser que minha reação ao vê-los seja meio… “empolgante”, por assim dizer. Mas quero que vocês saibam que em breve nos encontraremos e então poderei xingar dizer tudo o que tenho a dizer pessoalmente. E garanto: eu estou ANSIOSO por isto.

Sem mais, Zarko.

N. do E.: Segundo estimativas do médico responsável por seu quadro clínico, o colunista Zarko poderá retornar às suas atividades normais no prazo de três a quatro semanas a partir desta data, de acordo com a evolução de seu tratamento. Ansiamos por sua recuperação e, com seu retorno, prometemos “pegar leve” com nosso querido amigo. Pelo menos em seus primeiros dias.

LITTLE MAN • EUA • 2006
Direção de Keenen Ivory Wayans • Roteiro de Keenen Ivory Wayans, Marlon Wayans e Shawn Wayans
Elenco: Shawn Wayans, Marlon Wayans, Kerry Washington, John Witherspoon, Tracy Morgan, Chazz Palminteri, Lochlyn Munro, Molly Shannon, Rob Schneider.
89 min. • Distribuição: Columbia Pictures.


Zuzu Angel

30/08/2015

Crítica de Cinema – Texto publicado originalmente em A-ARCA, em 03/08/2006.

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Resumindo Zuzu Angel (Idem, 2006) em uma única expressão: ainda não foi desta vez.

Agora, às explicações: para qualquer cinéfilo familiarizado com a atual situação do cinema brasileiro – que há pouco tempo entregou uma seqüência de ótimos filmes (sim, refiro-me explicitamente a Dois Filhos de Francisco) para, em seguida, perder a mão em produtinhos pretensiosos e absolutamente vazios (sim, refiro-me explicitamente ao péssimo Olga) ou em comediazinhas babacas e ofensivas (sim, refiro-me explicitamente ao horrível Gatão de Meia Idade) -, o trabalho do conceituado Sérgio Rezende (de Lamarca) passava a única impressão de ser “mais um Olga da vida”, ou seja, mais uma produção com cara de novelão das oito, até mesmo pelo grau de tragédia de seu enredo e pela presença do aterrorizante selo da Globo Filmes em seu cartaz. Para a alegria da galera, não estamos diante de “um novo Olga”. Por outro lado, não há muito o que se comemorar, não; não é novelão, mas é QUASE.

O que acontece é que Zuzu Angel, que reconta a dramática trajetória real da estilista brazuca Zuleika Angel Jones, assassinada em 1976, nitidamente foge de todos os erros na qual a chatíssima fita de Jayme Monjardim caiu: o que Olga tem de melodramático, de clichê e de excesso de estilo, Zuzu Angel tem de seco, de sóbrio e de realista. Ponto positivo, claro. O barato é que, em contrapartida a este acerto, a película tropeça num problema que parece amaldiçoar toda e qualquer produção tupiniquim: roteirista de filme nacional não sabe escrever roteiros. Não é certo generalizar, eu sei, mas este problema aparentemente é crônico.

Não digo isto para inflar discussões calorosas ou apenas para parecer polêmico, por favor não me entenda mal. É um fato. Roteirista de filme brazuca não sabe ser sutil, não sabe sugerir, não sabe falar nas entrelinhas. É tudo hiper-mega-mastigado, é tudo explicadinho nos mínimos detalhes. Ultimamente, o cinema nacional (à exceção de um ou outro sopro de genialidade, como Lavoura Arcaica e Uma Vida em Segredo) não se cansa de sugerir que o público é burro – prova disso é o recente Tapete Vermelho, com Mateus Nachtergaele; mesmo bem divertido em seu todo, o longa perde um bom tempo ensinando à platéia, com uma irritante didática de professora de primeira série, o que é o tal do Movimento Sem-Terra (o que, diga-se de passagem, quase estraga a fita inteira). Isso doeu na minha alma.

Este mesmo didatismo, esta mesma mania boba de querer entregar um produto mastigadinho e de fácil compreensão para as massas, por pouco não enterra Zuzu Angel.

E olhe que a trama poderia render um filmaço: Zuzu (vivida de forma bastante louvável por Patrícia Pillar) é uma conceituada estilista que começa a lançar-se numa bem-sucedida carreira internacional lá pelos idos dos anos 70. Infelizmente, Zuzu não tem muitos motivos para comemorar, já que vê seu filho mais velho, o militante de esquerda Stuart Angel Jones (Daniel de Oliveira, o Cazuza do cinema), desaparecer misteriosamente ao lado de sua esposa, a professora Sônia (Leandra Leal). Stuart e Sônia, envolvidos na guerrilha estudantil contra a ditadura militar, são presos, torturados e mortos pelo exército – e na boa, se o discursinho político deles realmente foi da maneira mostrada na tela, até eu quereria ser torturado! Céus, até uma criança escreveria um diálogo melhor do que aquele!

Voltando… Zuzu, até então alheia para a situação política do país, cai bruscamente na realidade e, mesmo sem saber o que raios aconteceu a Stuart e até se ele está vivo ou morto – a morte dele nunca foi oficialmente comunicada –, inicia uma sofrida, angustiante, incansável e perigosa busca pelo paradeiro do filho. E isto é só o que você precisa saber. O final, quase todo mundo já sabe, mas não sou eu que vou detalhar. ;-)

Trama muito boa, sim. O problema é o desenvolvimento do roteiro. Um enredo tão delicado pode facilmente cair no discurso panfletário, e é exatamente o que acontece. A estrutura narrativa é deveras burocrática e apoiada em fórmulas batidas do cinema político. Os diálogos são muito bem planejados, na verdade bem planejados até demais, tanto que muitas vezes tornam-se falsos e demasiadamente teatrais (pombas, ninguém fala “está” com todas as letras na vida real! Todo mundo fala “tá”!), e a direção ocasionalmente irregular de Sérgio Rezende, que deveria naturalizar a influência do texto na interpretação dos atores, só prejudica a atuação do elenco – Daniel de Oliveira, por exemplo, tinha uma grande chance de mostrar que não foi bom apenas para interpretar Cazuza, mas acaba meio apagado por conta de seus diálogos ruins.

Se há um grande motivo para conferir Zuzu Angel, este motivo é Patrícia Pillar. A atriz simplesmente nasceu para este papel. Sua Zuzu transita do estado de profissional bem-sucedida e avançada à sua época para o estado de mãe angustiada e sofredora com uma sutileza fora do comum – provas disso são as cenas (pesadíssimas, aliás) na qual ela lê a carta de um amigo de Stuart, e a seqüência na qual dialoga com o personagem de Nelson Dantas. Quando Patrícia Pillar está em cena, é impossível prestar atenção em qualquer outra coisa. Na boa, não consigo enxergar atriz mais perfeita para o papel. E como se não bastasse, ela está mais linda do que nunca, mas isto é apenas um detalhezinho perdido no meio da multidão.

Então… Zuzu Angel é ruim? Bem, eu não seria tão categórico assim. Não é sofrível, embora seja longo demais. É um trabalho muito acima das produções nacionais de hoje em dia, e está muito, muito longe de ser um horroroso dramalhão das oito como é Olga, mas também não é tão bom a ponto de merecer créditos. É apenas mais uma prova de que o cinema brasileiro tem bastante potencial, mas precisa ser mais humilde e trabalhado com um pouco mais de atenção. E a julgar pela figura histórica e emblemática que retrata, tinha por obrigação ser no mínimo excelente. Do que adianta a atriz principal honrar a memória da personagem, se o filme num saldo geral não honra? Se Zuzu Angel, a mulher, foi ousada e muito à frente de seu tempo, Zuzu Angel, o filme, peca justamente por não ter metade da ousadia de sua retratada.

E pelo amor de Deus, senhores profissionais do cinema brasileiro: nós, público, não somos incapazes de compreender uma trama apoiada em sutilezas e sugestões! Não precisa mastigar tudo! :(

ZUZU ANGEL • BRA • 2006
Direção de Sérgio Rezende • Roteiro de Sérgio Rezende e Marcos Bernstein
Elenco: Patrícia Pillar, Daniel de Oliveira, Luana Piovani, Leandra Leal, Alexandre Borges, Ângela Leal, Ângela Vieira, Regiane Alves, Paulo Betti, Flávio Bauraqui, Nelson Dantas.
110 min. • Distribuição: Globo Filmes/Warner.


Café da Manhã em Plutão

30/08/2015

Crítica de Cinema – Texto publicado originalmente em A-ARCA, em 06/08/2006.

Café da Manhã em Plutão (Breakfast on Pluto)

Todo cinéfilo que se preze tem sua listinha de grandes diretores (ao menos um cinéfilo eu sei que tem: eu mesmo!). E o cineasta irlandês Neil Jordan costuma estar presente em grande parte destas listinhas. De exatos 15 longas dirigidos entre 1982 e 2006, o cara conseguiu a façanha de não “cometer” uma fita ruim sequer – talvez alguns discordem pelo menos do suspense A Premonição, com Annette Bening, mas eu defendo que, embora seja meio decepcionante enquanto enredo, é muito bom como “experiência climática”.

O grande mérito de Neil Jordan, entretanto, não é sua imensa habilidade em contar histórias, e sim o fato de ser extremamente imprevisível. Explico: enquanto ótimos diretores como Christopher Nolan, Darren Aronofsky e David Fincher costumam dirigir variações dentro de um mesmo gênero, Jordan é capaz de transitar entre gêneros absurdamente antagônicos e ainda imprimir sua indefectível marca. De um minúsculo e surpreendente thriller político independente (Traídos pelo Desejo), o cara foi para uma luxuosa superprodução hollywoodiana estrelada por vampiros (Entrevista com o Vampiro) para, em seguida, voltar às origens e narrar um aterrador drama irlandês sobre um garotinho homicida cuja terapeuta é a própria Virgem Maria (Nó na Garganta) e, logo depois, contar uma trágica história de amor envolvendo um escritor, uma senhora casada e Deus (!) em plena 2.ª Guerra Mundial (Fim de Caso). Todos estes títulos, nada menos que excepcionais.

O mais incrível na filmografia de Neil Jordan é que você nunca sabe qual será seu próximo passo. Seu novo filme, Café da Manhã em Plutão (Breakfast on Pluto, 2005), é uma prova concreta do que falo: é diferente de tudo o que existe no currículo do diretor e sem qualquer ligação com seu longa anterior, o policial Lance de Sorte. Só há duas semelhanças entre este e o resto de seus trabalhos: a) assim como os outros, todas as marcas do cineasta estão lá, o que nos faz identificar sua autoria automaticamente, e b) mais uma vez, Neil Jordan conseguiu não errar a mão. Melhor pra nós. :-D

Poucos cineastas, aliás, teriam sensibilidade suficiente para extrair uma linguagem sóbria e não piegas da dolorosa e surrealista história de Patrick “Kitten” Braden (Cillian Murphy). Senão, veja só: quando bebê, Patrick foi abandonado pela mãe na porta da paróquia do Padre Bernard (Liam Neeson) que, não por acaso, é seu pai; adotado por uma insuportável carola (Ruth McCabe), Patrick come o pão que o diabo amassou quando começa a demonstrar sua tendência ao homossexualismo e à rebeldia; já um pós-adolescente em plenos anos 70, vivendo, vestindo e falando como uma mulher, é expulso de casa e, ao travar um idílico contato com um grupo de motociclistas fumados – trecho que explica a metáfora do título do filme –, Patrick decide fugir da Irlanda e seguir a Londres para tentar encontrar sua mãe biológica. Tudo o que Patrick (ou Kitten, como prefere ser chamado) quer é sentir um pouco de calor humano e um pouco de afeto, por menor que seja; algo que nunca teve e talvez, bem provavelmente, nunca tenha.

A odisséia de Kitten não é tão simples como o parágrafo acima aparenta – como o próprio personagem diz no diálogo que abre a fita, “bem poucos dão conta da história de Patrick Braden”. Em um curtíssimo espaço de tempo, Kitten mergulha em uma espiral de excentricidades: envolve-se com uma banda de glam-folk-rock simpatizante do IRA nas horas vagas, apaixonando-se por seu vocalista (Gavin Friday); é quase assassinado por um galanteador serial killer; torna-se assistente de palco de um mágico bondoso, porém aproveitador (Stephen Rea); emprega-se em um curioso parque temático de contos de fada, fantasiando-se como um de seus personagens e fazendo amizade com um colega de trabalho bêbado (Brendan Gleeson); e é confundido com o autor de um atentado a uma discoteca inglesa. Aos poucos, tudo indica que Kitten está próximo de encontrar sua redenção. Ou não.

Analisando os detalhes da história de Kitten Braden, é de dar alívio que a produção tenha ficado a cargo de Neil Jordan. O caso é que o cineasta sabe como ninguém contar uma história recheada de surrealismo sem cair no dramalhão ou no cartunesco; embora totalmente macabro e cheio de momentos do mais puro sofrimento de novela das nove, o roteiro de Jordan e Patrick McCabe (também autor do romance na qual a película se baseia) é construído como uma deliciosa tragicomédia, uma fábula cujas situações muitas vezes não acabam bem. Portanto, não se sinta intimidado se o personagem se estrepar feio por alguma razão e você sentir um desejo sincero de sorrir daquilo… Uma cena em especial – na qual Kitten, pressionado e apanhando da polícia, narra a dois detetives seus fictícios dias de espiã terrorista (??) – é simplesmente hilária, ainda que cheia de melancolia.

É fato que muitos estranharão os diálogos recitados e quase poéticos da fita, além da forma despojada de se lidar com temas complicados como o terrorismo, a Igreja Católica (um dos alvos preferidos de Jordan) e a própria tendência do personagem central em enxergar-se como uma mulher – detalhe que definitivamente NÃO É o centro nervoso da fita, já vou avisando. Uma trama como a de Café da Manhã em Plutão é tão carregada no absurdo que seria mesmo impossível ser levada a sério – só para se ter uma ideia, há uma série de liberdades artísticas, como a presença de dois engraçadíssimos passarinhos fofoqueiros em certo momento (!). O que não significa que a história não seja séria. Ao mesmo tempo em que faz rir, emociona. A aleatoriedade de momentos trágicos e cômicos a cada episódio (o filme é dividido em 36 pequenos capítulos) estabelece um delicado equilíbrio que prossegue durante toda a projeção.

E o outro responsável por este mérito chama-se Cillian Murphy: o ator, mais conhecido como o Espantalho de Batman Begins e o gelado assassino de Vôo Noturno, provavelmente encontrou o papel de sua vida aqui. Sua construção de Patrick Braden é sutil, branda, sem qualquer traço de estereótipo e, ao mesmo tempo em que diverte, é muito, mas muito comovente – sério, não é nem um pouco difícil apaixonar-se por Kitten e torcer para que ele consiga encontrar alguém que “o leve para o hospital quando estiver caído” (não entendeu a citação, assista ao filme), independente da opinião do espectador acerca do que ele é. Não há como enxergar outro intérprete para este personagem e entende-se perfeitamente porque a crítica festeja Cillian Murphy como um dos melhores atores em atividade. E ele é mesmo, contra fatos não há argumentos.

Mas Murphy não está sozinho. A imensa galeria de coadjuvantes (cada um deles aparece muito pouco em cena, o que é uma pena) merece aplausos, em especial a mágica atuação de Liam Neeson como o indeciso Padre Bernard, e há pelo menos uma grande revelação aqui: a bela irlandesa Ruth Negga, intérprete da sensível Charlie, melhor amiga de Kitten. Só as atuações deste trio, as fantásticas canções da trilha sonora – a música de abertura, Sugar Baby Love, dos Rubettes, já ficou marcada – e a belíssima fotografia de Declan Quinn (responsável pelas líricas imagens de Despedida em Las Vegas) já valeriam a fita por si só. Felizmente, há muitos outros pontos a favor aqui.

A meu ver, o que faz a diferença em Café da Manhã em Plutão é mesmo a tremenda agilidade e os sentidos aguçados de Neil Jordan na direção. Ok, posso até ser suspeito para falar, pois declaradamente assisto qualquer coisa que este elemento faça desde que fui pego de surpresa com Traídos pelo Desejo. Mas é fato que Café da Manhã em Plutão é um trabalho que tinha tudo pra dar errado, caso o diretor responsável não o tratasse com certo despojamento e irreverência, e não soubesse focar sua câmera onde ela realmente deve ser focada. Nas mãos de qualquer um, poderia tornar-se apenas uma apologia à diversidade sexual (o que não é, torno a dizer). Ou então, poderia tornar-se apenas um libelo panfletário contra o terrorismo, já que o personagem central vive e sente na pele algumas conseqüências dos conflitos entre o IRA e a milícia real armada que aterrorizaram a Irlanda dos anos 70.

Nas mãos de quem entende do assunto, porém, torna-se exatamente aquilo que é: um emocionante, triste, musical, surreal e divertido drama tragicômico (esquisito, não?) sobre a busca de um homem (ou uma mulher, dependendo do ponto de vista) por seu passado e, conseqüentemente, por sua felicidade. Um trabalho capaz de deixar o espectador alegre ou triste, dependendo de seu estado de espírito ao assisti-lo. Para resumir, Café da Manhã em Plutão é mais um longa-metragem que comprova que Neil Jordan merece mesmo estar em qualquer lista de grandes cineastas de qualquer cinéfilo. Vejamos agora qual será seu próximo trabalho imprevisível.

E se você não conhece os filmes deste sujeito… Já está na hora, viu? :-)

BREAKFAST ON PLUTO • ING/IRL • 2006
Direção de Neil Jordan • Roteiro de Neil Jordan e Patrick McCabe • Baseado no romance de Patrick McCabe
Elenco: Cillian Murphy, Liam Neeson, Ruth Negga, Lawrence Kinlan, Stephen Rea, Brendan Gleeson, Gavin Friday, Ian Hart, Eva Birthistle, Ruth McCabe, Steven Waddington.
135 min. • Distribuição: Sony Pictures Classics.


Educação

30/08/2015

Crítica de Cinema – Texto publicado originalmente no JUDÃO, em 18/02/2010.

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Educação (An Education, 2009) é um daqueles filmes que parecem muito pequenos e muito comuns à primeira vista. Educação é tão pequeno que você se pergunta como diabos alguém pode perder tempo com ele quando se pode passar quase três horas de sua vida delirando com coisas visualmente encantadoras e mágicas como Avatar, aquele filme que ninguém nunca ouviu falar e ninguém assistiu (!). Educação é tão comum que, se você já assistiu Avatar (mais conhecido como “alegoria 10, enredo 0”) e decide enfrentar uma sessão só por não ter mais nada sendo exibido no circuito, você passa metade da projeção tentando adivinhar os próximos passos da trama – e conseguindo.

Pior ainda quando sabemos que trata-se do primeiro roteiro oficial escrito por um dos mais renomados escritores contemporâneos, o britânico Nick Hornby (autor de Alta Fidelidade e Um Grande Garoto) – que já escreveu o roteiro da primeira versão de Febre de Bola, que não conta por ser uma variável de um livro de sua autoria. Enfim, quem já botou as mãos em qualquer um dos livros de Hornby, sabe que estamos falando de um sujeito que transforma qualquer história batida em fábulas absurdamente engraçadas e apaixonantes, o que de fato não chega a ser o caso de Educação (cujo roteiro foi desenvolvido a partir das memórias da novelista Lynn Barber).

Basta uma análise mais contundente, entretanto, para notar o quanto Educação é muito mais do que “apenas uma fitinha como tantas”. O longa-metragem muito bem conduzido pela dinamarquesa Lone Scherfig (diretora dos elogiados Italiano Para Principiantes e Meu Irmão Quer Se Matar) conta mesmo uma história que provavelmente já vimos antes em várias outras produções, mas não da forma como ela se apresenta aqui e certamente nunca com tanta profundidade emocional nas entrelinhas. E considerando o bom e velho ditado “não importa se a história é velha, o que importa é como ela é contada”, temos aqui um filminho que cresce bastante por conta de todos os seus acertos.

Vamos, então, ao primeiro deles: Carey Mulligan. Mas antes de falar da sujeita, a história: logo nos primeiros minutos, conhecemos a rotina da adolescente Jenny (Mulligan), de 16 anos. A menina mora no subúrbio de Londres, em 1961, e estuda em um colégio para moças, controlado com certa rigidez por uma diretora (Emma Thompson) tão ou mais apagada que a própria professora (Olivia Williams), as amigas de colégio e a mãe de Jenny. Já o pai (Alfred Molina, excepcional) só quer saber das aulas de Latim da filha – é que o indivíduo vive para ver Jenny ingressar em Oxford, o que não parece ser o maior sonho da vida da garota.

Na verdade, embora seja dona das melhores notas no colégio, esteja acostumada a devorar livro após livro, conheça artes plásticas como ninguém e represente o cúmulo da filha exemplar, Jenny não deseja este tipo de vida. Pra começar, Jenny é notadamente muito mais avançada e intelectual do que qualquer garota que esteja à sua volta. E estamos no início dos anos 60, época em que as mulheres começaram a lutar por igualdade e pelo fim da repressão sexual, e Jenny crê que será mais feliz se puder usar calças, ouvir qualquer música que não seja clássica e passear pela Europa ocasionalmente. E esta possibilidade surge à sua frente na forma do bon vivant trintão David (Peter Sarsgaard). O estilo de vida de David e seus amigos Danny (Dominic Cooper) e Helen (Rosamund Pike, hilária), que passam dias e noites em leilões e museus, adoram obras de arte e corridas de cães e viajam pela França como se fosse uma visitinha rotineira à casa da vovó (!), atinge Jenny como uma bala de canhão.

A partir daí, a menina se vê em uma sinuca de bico: com David, com a qual engatará um romancezinho (que obviamente tem tudo para dar errado – ou não), Jenny aprende que a melhor educação é, nas palavras do próprio cara, “aquela que nenhuma instituição a não ser a vida lhe ensinará”. Para isto, porém, ela precisará abdicar de tudo o que uma formação em Oxford pode lhe proporcionar e pode acabar como mais uma dona-de-casa que fará as vontades de um futuro marido e não terá conhecimento para conquistar o mundo por suas próprias mãos. O que fazer? Atropelar sua juventude e enfrentar o mundo com as armas que tem? Abraçar sua rotina e deixar que o tempo se encarregue do resto?

Simples? Pois é, não é? Nem tanto. A burocracia do enredo esconde diálogos bem espirituosos – cortesia, claro, da escrita bem imaginativa de Nick Hornby – e metáforas atemporais e universais. O que temos aqui é basicamente um filme teen escondido atrás de um rótulo maduro e conciso, sobre desejos e angústias reais de uma adolescente que, ainda retratada em uma época específica, reflete aspectos de qualquer adolescente a qualquer tempo. Algo como Meninas Malvadas, aquela aparente comediazinha boba da Lindsay Lohan que, graças aos miraculosos dedinhos da senhora Tina Fey no roteiro, revela-se uma senhora apologia aos problemas de juventude.

Mas é claro que um bom filme não é feito só de uma boa história. Educação acerta bonito na belíssima reconstituição de época, na obscura fotografia, na excelente trilha sonora (composta pelo músico teatral Paul Englishby, responsável pela execução técnica de som do recente O Lobisomem, com Benicio Del Toro)…

E na escolha de Carey Mulligan, indicada ao Oscar por este papel, que torna-se peça fundamental do bom resultado de Educação. Sua interpretação da insegura Jenny é de encantar qualquer um – a atriz consegue transitar numa boa da inexperiência para a maturidade à medida que a projeção se desenrola, e olhe que a menina nem precisa de muito esforço para isso. E o time de coadjuvantes escalados pela direção dedicada e carinhosa da cineasta Lone Scherfig é inspirador – o destaque vai para os hilários desempenhos de Alfred Molina (como o pai tagarela de Jenny) e da belíssima Rosamund Pike (como a loira burra que não se conforma com o fato de a menina gostar de ler livros – “revistas são melhores, elas não vão te deixar com olheiras e tudo caindo!”). Sério, alguém podia ter se lembrado destes dois nesta última temporada de prêmios! :-D

Resuminho da obra? Educação é um filme bem pequeno, bem comum, quase banal e até previsível, que transcende estes rótulos e tem muito a dizer quando visto de forma mais analítica. Talvez não seja mesmo tão merecedor assim de metade dos prêmios ao qual está indicado, mas certamente está muito além de “apenas mais uma fitinha menor”. Se não rolar mais nada nas salas de cinema, vai fundo! E depois da sessão, aproveite e corra até a livraria mais próxima, carregue o máximo de livros assinados pelo Nick Hornby que você puder, e entenda por qual razão todo mundo deveria botar esse meliante para escrever roteiros de filmes! O bom gosto dos espectadores agradece. ;-)

AN EDUCATION • ING/EUA • 2009
Direção de Lone Scherfig • Roteiro de Nick Hornby • Baseado nas memórias de Lynn Barber
Elenco: Carey Mulligan, Peter Sarsgaard, Dominic Cooper, Alfred Molina, Rosamund Pike, Olivia Williams, Emma Thompson.
100 min. • Distribuição: Sony Pictures Classics.


Ela

30/08/2015

Crítica de Cinema – Texto publicado originalmente no JUDÃO, em 14/02/2014.

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Algumas constatações: Ela (Her, 2013) é um filme lindo. Ela é o melhor filme da ainda curta carreira cinematográfica de Spike Jonze (responsável também pelo insano Quero Ser John Malkovich). Ela é também, disparado, o “segundo” melhor filme da edição 2014 do Oscar (o primeiro, em minha opinião, é o embasbacante Clube de Compras Dallas, mas deste falamos em outra ocasião). E, embora estejamos ainda nos primeiros meses do ano, posso garantir que será difícil encontrar uma produção tão bem-sucedida em sua proposta como Ela. O motivo para este alarde todo é justificável: não é qualquer filme que se propõe a falar de uma infinidade de assuntos e consegue ser tão perfeito na abordagem de todos eles.

Bajulações à parte, vamos lá para os detalhes. Quem conhece a filmografia de Spike Jonze sabe que o sujeito é dado a contar histórias no mínimo surreais. Mas o tema central é o mesmo em todos os seus trabalhos: a solidão, a incomunicabilidade, o desejo de ser alguém que você definitivamente não é, o desejo de ser aceito. Quero Ser John Malkovich, o ensaio metalinguístico Adaptação e a fábula infantil Onde Vivem os Monstros narram acontecimentos independentes entre si apenas para chegar a esta mesma linha.

Ela, que poderia ser definido como um misto de romance e sci-fi, não é diferente. O personagem principal, o introspectivo Theodore Twombly (Joaquin Phoenix, em mais uma grande atuação), está enfrentando um traumático processo de separação e, embora tenha um círculo ativo de amigos e seja bem respeitado em seu trabalho, alguma coisa falta em sua vida – o que logo descobrimos ser Catherine (Rooney Mara), a ex-esposa que o amava, mas que decidiu ir embora por conta do desgaste do tempo. Uma vida tranquila, essa de Theodore, mas ainda assim infeliz.

E não ajuda muito viver em uma Los Angeles em alguns anos no futuro, onde a tecnologia avançou consideravelmente e as pessoas estão cada vez mais presas a seus tablets e smartphones, que agora possuem uma característica peculiar: um sistema operacional programado para reconhecer as necessidades básicas de seu usuário e organizar sua vida, lendo seus e-mails, organizando suas agendas, escolhendo as músicas que você quer ouvir. Em uma já clássica sequência inicial, ao som da excelente Off You, dos Breeders, conhecemos a melancólica rotina de Theodore: de casa para o trabalho, do trabalho para casa, sempre acompanhado de seu mini-tablet, relacionando-se apenas consigo mesmo.

Em dado momento, Theodore adquire uma atualização deste sistema operacional dotado de inteligência artificial, capaz de interagir com o usuário de forma mais, bem, humana. Samantha, o software cujo nome foi dado por si mesmo, parece compreender Theodore como ninguém jamais o entendeu: conversa com ele durante a noite, tenta entender sua rotina e até lhe acompanha em seu jogo de videogame preferido. Mesmo sem um rosto, Samantha parece mesmo, e poderia ser, alguém muito real, de carne e osso.

E qual não é a surpresa quando Theodore descobre-se totalmente apaixonado pelo sistema operacional? Para piorar ainda mais a situação, Samantha parece o tempo todo corresponder a este sentimento (!) – o que não é tão estranho assim, já que o processo natural de um equipamento que pensa é começar a questionar o mundo e sua própria “não existência”, assumindo para si sentidos característicos dos humanos. Como poderia um homem apaixonar-se por uma máquina? E esta máquina, é realmente capaz de sentir, ou é um sistema programado para adaptar-se e responder positivamente aos estímulos de seu “dono”? Não demora para que Theodore e Samantha assumam um relacionamento, e a esta altura, já não se sabe mais qual é o limite entre fantasia e realidade.

Ok, o enredo de Ela não é tão estranho quanto a própria filmografia de Spike Jonze – não há aqui nenhum portal que nos leve direto à mente de John Malkovich :-) – e podemos até dizer que o estilo de narrativa adotado aqui aproxima-se muito mais dos trabalhos de Charlie Kaufman, em especial a obra-prima Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças: temos aqui uma situação surreal, tratada com uma naturalidade tão notável que é realmente factível acreditar que aquilo tudo pode acontecer.

E é impressionante como a trama de Ela, escrita pelo próprio Spike Jonze, é capaz de despertar muitas discussões. Até que ponto a tecnologia de nosso dia-a-dia, principalmente os celulares e as redes sociais, que deveriam aproximar as pessoas, pode nos influenciar a ponto de causar o efeito inverso? Por que o mundo virtual, aquela realidade de plástico que a gente cria quando se transforma em um perfil de Facebook, é tão mais atraente que o mundo real? Por que temos propensão a nos afeiçoar àquilo que de fato não existe? Quais são os limites da ciência? O que pode acontecer quando uma máquina desenvolve consciência?

Muito ajuda a ambientação absolutamente crível – o futuro próximo retratado em Ela não é apocalíptico como um Blade Runner da vida e é bastante factível, considerando o estágio de evolução tecnológica em que estamos hoje -, a fantástica trilha sonora incidental (cortesia da banda canadense Arcade Fire) e principalmente o formidável trabalho dos atores: além da atuação sob medida de Joaquin Phoenix, é preciso destacar também o excelente trabalho de Scarlett Johansson como Samantha. Embora seja apenas um trabalho de voz, é impressionante como é possível sentir a presença da personagem, o que faz o espectador entender claramente o sentimento que o software desperta em Theodore – a campanha que os produtores fizeram por uma indicação de Melhor Atriz para Scarlett Johansson é justificável SIM, mesmo que não vejamos seu rosto em momento algum. E Amy Adams, como uma amiga de Theodore que foi abandonada pelo namorado e passa a viver um “relacionamento” de altos e baixos com seu gadget (!), comprova que é uma das grandes atrizes em atividade.

Mas o maior mérito de Ela, aquele que o torna um dos filmes mais bonitos dos últimos tempos e obrigatório para qualquer fã de cinema, é a identificação imediata do espectador. Não importa o surrealismo da trama, não importa o quão absurdo este plot pode parecer: qualquer um que já tenha se apaixonado, qualquer um que já tenha tomado um corno no meio da testa e qualquer um que já tenha sofrido um belo de um pé na bunda poderá reconhecer a si mesmo em muitos momentos de Ela. Afinal, é apenas uma história de amor. Uma bela e muito triste história sobre como o amor pode sobreviver em uma época em que estamos totalmente dependentes da tecnologia.

Por via das dúvidas, já joguei meu celular fora. :-)

HER • EUA • 2013
Direção de Spike Jonze • Roteiro de Spike Jonze
Elenco: Joaquin Phoenix, Scarlett Johansson, Amy Adams, Rooney Mara, Olivia Wilde, Chris Pratt, Kristen Wiig, Bill Hader.
126 min. • Distribuição: Sony.