Cinema Noir

24/04/2012

Matéria de Cinema – Texto publicado originalmente em A ARCA, em 25/07/2005.

Se você quiser encontrar aquele seu amigo fã de quadrinhos nesta sexta-feira, ou qualquer outro mortal que goste um mínimo de gibis, a única solução será correr ao cinema mais próximo. Claro! Afinal, estamos falando da esperadíssima sexta-feira da estréia de Sin City – A Cidade do Pecado em solo tupiniquim! Depois de tanto tempo de espera, depois de tanto tempo sofrendo com as ótimas críticas lá fora, depois de tanto tempo de incertezas acerca de seu lançamento por aqui, finalmente nós, meros brazucas, poderemos conferir esta belezinha em tela grande.

Mas as salas de projeção não deverão estar lotadas somente de adoradores da saga de Frank Miller e de HQs em geral: a parcela cult e boa parte de cinéfilos também poderão marcar presença, embora seja difícil encontrar alguém que goste tanto de filmes nerd quanto de filmes cult (salvo uma exceção chamada Zarko). O fato é que Sin City não é somente uma adaptação de um gibi: é também uma pusta de uma homenagem ao saudosíssimo cinema noir.

Quem não sabe o que diabos este termo significa, ou quem pensa que isto foi apenas um erro de digitação (!), não precisa se preocupar, pois eu explico: o cinema noir (favor pronunciar NOÁR) é um dos mais populares e adorados gêneros cinematográficos do passado, mais exatamente dos anos 30 até os 50. Traduzindo literalmente, o termo, criado por críticos franceses para denominar fitas policiais, significa “novela escura”. Como o próprio nome diz, a principal característica dos exemplares desta categoria envolvem a exploração do lado sinistro do duelo mocinho vs. bandido.

Até os idos de 1930, os longas-metragens policiais eram bem claros: o mocinho era bondoso e puro; o bandido era o estereótipo máximo da vilania, o que o tornava muitas vezes risível. O noir procurava dissecar o lado psicológico deste embate; nos filmes noir, integridade era uma palavra inexistente, ou seja, o bom poderia ser tão corrupto, sinistro e dissimulado quanto o mal. Às vezes, até mais. O objetivo do gênero era explorar o filão policial através de seu lado mais complicado: o psíquico.

Segundo muitos críticos, o primeiro longa genuinamente noir é Quem Matou Vicki? (I Wake Up Screaming, 1942), dirigido por H. Bruce Humberstone, que narra o empenho de um sádico policial (Laird Cregar) em aterrorizar os personagens de Victor Mature e Betty Grable, supostos suspeitos de um assassinato. Embora a narrativa pareça estar focada na investigação do tal crime, o centro nervoso da produção é o pesadelo psicológico construído pelo perigoso policial, que abusa de sua autoridade para satisfazer desejos pessoais, e que serve de armadilha para os dois suspeitos. Quem Matou Vicki? ditou a mais importante regra dos filmes noir: a lei nunca é indiscutivelmente confiável, e pode muito bem surtir o efeito contrário ao que deveria (o tal “proteger e servir”). Se ótimas películas de hoje como Seven e Jogos Mortais existem, a culpa é de Quem Matou Vicki?.

Obviamente, para fazer parte desta ilustre categoria do cinema dos anos 30-40-50, era necessário seguir algumas regras. Se você está na década de 40 e quer rodar um autêntico noir, você deve: narrar um crime; ambientar seu enredo numa cidade grande e suja, cheia de becos escuros e inferninhos; utilizar uma atmosfera soturna e sombria, de preferência com uma fotografia sem cores e bastante contrastada; contar sua história sob a perspectiva do(s) bandido(s); retratar a polícia como uma organização com um potencial fora do comum para se corromper; ter uma femme fatale entre seus personagens, para causar o declínio do mocinho; mostrar gangues ou grupos de homens (bandidos ou mocinhos) cheios de amor e ódio para um com o outro; não ter medo de filmar violência; e ler muitos livros de Dashiell Hammett e Raymond Chandler, considerados os pais do noir.

Bem, já que você agora sabe o que é um filme noir, confira logo abaixo uma listinha bacanuda de 16 exemplares absolutamente obrigatórios deste gênero. Vale lembrar que os títulos abaixo não seguem uma ordem de importância: segundo a crítica especializada, cada um destes trabalhos sintetizam à perfeição o que o noir representou e ainda representa para a meca do cinema. E posso dizer com conhecimento de causa, já que este que vos fala, um autêntico maluco obcecado pela arte cinematográfica, já assistiu estas fitas no mínimo cinco vezes cada uma! Enfim… leia, assista e diga em voz alta: mocinho perfeito é o cacete! :-D

• O FALCÃO MALTÊS (The Maltese Falcon, 1941)

O chefão: John Huston

O caso: O detetive particular Sam Spade (Humphrey Bogart) é contratado pela misteriosa Brigid O’Shaughnessy (Mary Astor). Segundo a moça, um homem a segue insistentemente e ela quer saber porquê. Spade pede que seu parceiro siga o meliante e, na mesma noite, tanto o parceiro de Spade quanto o suposto bandido aparecem mortos. Desconfiado da sedutora mulher, Spade passa a investigá-la e descobre que foi envolvido numa absurda trama de roubo e traições, cujo pivô é uma valiosa estátua de falcão vinda da Ilha de Malta. Todos querem a estátua. Inclusive Sam Spade.

Caso encerrado: É, na opinião da crítica e do público-alvo, o melhor longa-metragem do gênero. Cheio de tensão e personagens canalhas.

• LAURA (1944)

O chefão: Otto Preminger

O caso: O policial Mark McPherson (Dana Andrews) investiga o assassinato cruel e aparentemente sem motivo da jovem publicitária Laura Hunt (Gene Tierney), morta com um tiro de espingarda no rosto. O principal suspeito é o jornalista Waldo Lydecker (Clifton Webb), amigo de Laura. Aos poucos, McPherson começa a se apaixonar pela morta (!). Certa noite, ao adormecer sobre um retrato da moça, ela reaparece (!!). A vítima, agora, ocupa o primeiro lugar da lista de suspeitos (!!!).

Caso encerrado: Um quebra-cabeças com todas as peças no lugar. E a reviravolta do meio do filme, junto com o final surpresa (hoje já defasado), deixa todo mundo embasbacado! M. Night Shyamalan? Faça-me o favor.

• GILDA (1946)

O chefão: Charles Vidor

O caso: Depois de salvar a vida do dúbio ricaço Ballin Mundson (George Macready), o malandro de coração de ouro Johnny Farrell (Glenn Ford) é contratado como sócio da boate da qual o primeiro é dono, em Buenos Aires. Johnny precisa de dinheiro e Ballin, de alguém intimidador. Então casou direitinho, e tudo corre às mil maravilhas. As coisas começam a desandar quando Ballin viaja a negócios e retorna casado com a cantora Gilda (Rita Hayworth), amante de Johnny no passado. Gilda, mulher indomável, promete transformar a vida do rapaz num inferno de proporções inimagináveis, fazendo de tudo para provocá-lo sexualmente.

Caso encerrado: Rita Hayworth, como Gilda, entregou a melhor femme fatale do cinema até hoje. E quem não se arrepia todo com o strip-tease de uma luva que a moçoila faz em dado momento da fita?

• O DESTINO BATE À SUA PORTA (The Postman Always Rings Twice, 1946)

O chefão: Tay Garnett

O caso: Na Califórnia dos anos 30, o truculento Frank Chambers (John Garfield) é contratado para trabalhar como frentista num pequeno restaurante anexo a um posto-de-gasolina de beira de estrada. Em pouco tempo, Chambers é seduzido pela sensual Cora Smith (Lana Turner), infiel esposa do dono do lugar, Nick (Cecil Kellaway). Frank e Cora começam a ter um caso, e não demora muito para que os dois pombinhos tenham a brilhante e infalível idéia de assassinar Nick para fugir com seu dinheiro…

Caso encerrado: A tela literalmente pega fogo! Não assistir usando qualquer coisa inflamável.

• O BEIJO DA MORTE (Kiss of Death, 1947)

O chefão: Henry Hathaway

O caso: O gatuno Nick Bianco (Victor Mature) é preso e, durante seu interrogatório, recusa-se a delatar um colega. Seu discurso logo muda quando descobre que sua esposa cometeu suicídio. Assim, Bianco aceita trabalhar como informante da polícia em troca da liberdade condicional, para que possa reencontrar as duas filhas que agora vivem em um orfanato. O problema é que o sádico Tommy Udo (Richard Widmark), um dos homens que Bianco ajudou a prender, foi absolvido e sabe que o outro é delator. Tommy Udo está sedento por vingança.

Caso encerrado: Se Gilda é de Rita Hayworth, O Beijo da Morte é exclusivamente de Richard Widmark, aquele tipo de sujeito que mete medo só de olhar para você. O cara era muito, muito bom!

• A DAMA DE SHANGHAI (The Lady From Shanghai, 1948)

O chefão: Orson Welles

O caso: Como forma de gratidão por ter protegido a bela Elsa Bannister (Rita Hayworth) durante um incidente, o marido inválido desta, Arthur (Everett Sloane) decide dar um emprego ao pobretão Michael O’Hara (Orson Welles) em seu iate. Mesmo com uma iminente sensação de que algo fede, O’Hara aceita o serviço. E percebe ter feito a pior burrada de sua vida ao se aproximar ainda mais da maligna Elsa e se deixar envolver por uma série de acontecimentos trágicos.

Caso encerrado: Orson Welles mutilou os cabelos longos e ruivos de Rita Hayworth para transformá-la numa loira gelada. E criou a seqüência dos espelhos, uma das cenas mais famosas da história do cinema!

• UMA VIDA POR UM FIO (Sorry Wrong Number, 1948)

O chefão: Anatole Litvak

O caso: Leona Stevenson (Barbara Stanwyck) é uma mulher rica e doente, que não consegue sair da cama e tem em seu telefone o único meio de contato com o mundo exterior. Sua vida torna-se um pesadelo quando ouve, em uma linha cruzada, um plano de assassinato a ser concretizado naquela mesma noite. Não seria algo tão alarmante se outros telefonemas não revelassem que a vítima do plano é ela mesma (!) e o assassino, seu próprio marido, Henry (Burt Lancaster), encrencado até a medula por causa de dívidas de jogo.

Caso encerrado: O filme é bastante conhecido por conta de Alfred Hitchcock, que bradou a quem quisesse ouvir que adoraria ter dirigido este filme. Preciso dizer mais? Se preciso, basta que você saiba que Uma Vida por Um Fio tem um dos finais mais aterrorizantes da história do cinema. Sim, é de dar pesadelos à noite!

• O TERCEIRO HOMEM (The Third Man, 1949)

O chefão: Carol Reed

O caso: O escritor americano Holly Martins (Joseph Cotten) viaja à Áustria a convite de seu amigo de infância, Harry Lime (Orson Welles), que prometera-lhe um emprego. Quando chega em Viena, porém, Martins recebe a notícia da misteriosa morte de Lime, ocorrida naquela mesma manhã. Chocado, desorientado e sem saber o que fazer, o escritor vaga pelas ruas da cidade e, certa noite, jura de pé junto que viu Lime de relance. Ao investigar o caso por conta própria, Martins descobre que Harry Lime está vivo e é o cabeça de um perigoso esquema de tráfico de penicilina. Martins percebe que está em uma enrascada.

Caso encerrado: De todos desta lista, sem dúvidas é o meu preferido. A cítara de Anton Karas e as expressões tristonhas da belíssima Alida Valli, somada à fotografia inspirada, tornam este longa uma experiência única.

• COM AS HORAS CONTADAS (D.O.A./Dead on Arrival, 1950)

O chefão: Rudolph Maté

O caso: O empresário Frank Bigelow (Edmond O’Brien) chega a São Francisco para se divertir por uma noite, antes que assuma de vez seu noivado com a bela Paula (Pamela Britton). Depois de uma noitada, Frank acorda na manhã seguinte e descobre que fora envenenado e tem somente 24 horas de vida! Assim, o homem empreende uma insana busca para descobrir quem o envenenou e o porquê.

Caso encerrado: História originalíssima! Uma sucessão de injustiças que faz o espectador querer morrer. Imaginem o empenho do indivíduo, mesmo tendo consciência de que seu esforço será totalmente em vão… Mais revoltante que isto, só o motivo do envenenamento. No bom sentido, claro!

• CREPÚSCULO DOS DEUSES (Sunset Boulevard, 1950)

O chefão: Billy Wilder

O caso: O endividado roteirista Joe Gillis (William Holden) esconde-se de agiotas no que parece ser uma mansão abandonada, na conhecida Sunset Blvd., em Hollywood. A mansão, entretanto, é habitada pela ex-diva do cinema mudo Norma Desmond (Gloria Swanson) e seu mordomo Max (Erich Von Ströheim). Norma transforma Gillis em seu prisioneiro e, em seguida, seu amante. A idéia da atriz é fazer com que o roteirista escreva uma história com a qual ela possa voltar aos seus dias de fama e glamour. E se isto não acontecer, cabeças vão rolar.

Caso encerrado: Talvez o único suspense noir de humor negro. Bizarro. E lindo, muito lindo. Considerado pela crítica o melhor filme da carreira do saudoso cineasta Billy Wilder.

• O SEGREDO DAS JÓIAS (The Asphalt Jungle, 1950)

O chefão: John Huston

O caso: O escroque Doc Erwin Riedenschneider (Sam Jaffe), recém-saído da prisão, contrata um grupo de pessoas desconhecidas entre si para realizar um ousado roubo milionário. A princípio, o plano até que dá certo. Mas a ganância e o egoísmo de cada um dos integrantes do bando começam a se manifestar, colocando tudo a perder.

Caso encerrado: De onde vocês acham que surgiu Cães de Aluguel? :-D

• MEU OFÍCIO É MATAR (Suddenly, 1954)

O chefão: Lewis Allen

O caso: A pequena e pacata cidade de Suddenly torna-se palco de um acontecimento trágico envolvendo a jovem e popular viúva Ellen Benson (Nancy Gates). Sua casa é invadida por um grupo de bandidos liderados pelo atirador John Baron (Frank Sinatra), que tomam a viúva, seu pai e seu filho pequeno como reféns. O motivo: o Presidente dos Estados Unidos visitará a cidade de trem, e a residência de Benson é o único lugar com uma vista boa para a estação. Cabe ao xerife Tod Shaw (Sterling Hayden) contornar a situação. Mas será que Shaw é confiável?

Caso encerrado: Frank Sinatra… como um assassino de aluguel? Yeah!

• O MENSAGEIRO DO DIABO (The Night of the Hunter, 1955)

O chefão: Charles Laughton

O caso: Harry Powell (Robert Mitchum), um matador que usa um disfarce de pastor religioso, sai da cadeia determinado a encontrar e eliminar Willa Harper (Shelley Winters) e seus dois filhos pequenos, John e Pearl. Embora ninguém saiba o real motivo da caçada que o assassino empreende, logo as coisas se encaixam: o companheiro de cela de Powell e ex-marido de Willa, Ben Harper (Peter Graves), assaltou um banco, levando consigo uma bolada em dinheiro vivo e matando duas pessoas no caminho. Antes de morrer enforcado, contudo, Harper revelou a Powell a chave para a localização do dinheiro roubado: o interior da inseparável boneca de sua filha Pearl.

Caso encerrado: O Robert Mitchum dá medo. Muito medo. E no bom sentido, que fique bem claro.

• HORAS DE DESESPERO (The Desperate Hours, 1955)

O chefão: William Wyler

O caso: A sossegada rotina da família Hilliard, comandada por Dan (Frederic March), é quebrada com a chegada de um trio de bandidos liderado pelo psicótico assassino Glenn Griffin (Humphrey Bogart). O trio, que acabou de escapar da cadeia, invade a casa e toma a família como refém, até que a namorada de um deles chegue com uma maleta recheada de dinheiro; dinheiro este que os bandidos pretendem usar para fugir. Griffin é claro em suas ordens: se ninguém cometer burradas, ninguém sairá machucado. Obviamente, muitas coisas acontecerão…

Caso encerrado: Horas de Desespero eleva ao cubo o embate psicológico entre refém e carrasco. Um duelo verbal e mental difícil de encontrar em outro filme.

• A MARCA DA MALDADE (Touch of Evil, 1958)

O chefão: Orson Welles

O caso: O policial mexicano Ramon Vargas (Charlton Heston) e sua esposa Susan (Janet Leigh) estão passando a lua-de-mel numa pequena cidade na fronteira entre o México e os Estados Unidos. Um crime acontece, e Ramon, ou Mike (como costuma ser chamado), decide investigar. O problema é que um enorme obstáculo não sairá do caminho do honesto tira mexicano: o corrupto oficial americano Quinlan (Orson Welles). Quinlan, cuja especialidade é forjar provas e pistas, faz de tudo para defender aqueles que ama, por mais que estes sejam culpados. Os dois policiais entrarão em choque.

Caso encerrado: Para muitos, A Marca da Maldade é o filme que mais fez uso dos elementos característicos do noir. Irônico, sabendo que o gênero teve seu fim praticamente decretado depois desta produção. Chave de ouro!

• UM CORPO QUE CAI (Vertigo, 1958)

O chefão: Alfred Hitchcock

O caso: O detetive Scottie Ferguson (James Stewart) carrega um pesadíssimo medo de alturas, conseqüência de um trauma ocorrido quando presenciou a trágica morte de seu parceiro. Algum tempo depois do acontecido, Ferguson é contratado para seguir a bela Madeleine Elster (Kim Novak), mulher meio pancada com fortes tendências suicidas. Ferguson é envolvido num jogo doentio, envolvendo Madeleine e uma outra garota, Judy Barton (também Kim Novak), praticamente uma cópia carbono da primeira.

Caso encerrado: Alfred Hitchcock não tem substitutos. Não adianta ninguém querer chegar perto. Afinal, o cara conseguiu realizar o único filme noir a cores realmente digno de nota.

O cinema noir começou a perder força por volta do final dos anos 50, com o advento dos filmes coloridos – uma das marcas registradas do gênero era a fotografia em preto-e-branco, embora não fosse isto uma lei. Depois desta fase, surgiram muitos trabalhos que reciclaram as características da categoria, bem como filmes cujo propósito era somente homenagear o noir. Estas duas categorias são chamadas de neo-noir, que é exatamente o que é Sin City. Dentre alguns títulos neo-noir, é fácil citar coisas bacanas como 8MM, Chinatown, À Queima-Roupa, Voltar a Morrer, O Homem Que Não Estava Lá, entre outros.

Acima de tudo, o cinema noir tornou-se um divisor de águas por representar uma evolução na forma de trabalhar os filmes. O gênero, com seus exemplares de alto teor psicológico, ajudou a definir o final de um era de inocência no cinema mundial – principalmente o americano – e o início de outra era mais madura, com roteiros mais consistentes e não tão inocentes, com personagens mais complexos e não tão superficialmente definidos. Pois é, o negócio foi bom mesmo! Época de evolução e amadurecimento que, infelizmente, parece não ter mais lugar no nosso cinema de hoje. Pelo menos vivemos na era do DVD, onde isto é sanado rapidamente! Afinal, mesmo que uma série de Gisele Bündchens assaltando bancos de biquíni pipoquem na telona, sempre haverá uma Rita Hayworth esperando por você, para fazer um strip-tease tirando apenas uma luva. :-)

CINEMA NOIR
Matéria publicada originalmente em A ARCA, em 25/07/2005
Complemento do especial para a estréia do longa-metragem SIN CITY – A CIDADE DO PECADO (Sin City).


O Artista

02/04/2012

Crítica de Cinema

O Artista (The Artist, 2011) é, sem exageros, um caso singular no cinema atual. Senão, veja só: em uma época em que o cinema ainda sofre a supremacia das superproduções hollywoodianas recheadas de tramas mirabolantes, CGIs surpreendentes e muitos deles em terceira dimensão, uma pequena fitinha independente co-produzida entre França e Bélgica tornou-se um estrondosso sucesso de público e crítica – rendeu no mundo todo quase US$ 120 milhões, oito vezes mais o que custou (US$ 15 milhões) – e ainda abocanhou um número invejável de 110 prêmios internacionais, incluindo 5 importantes Oscars, dentre eles o prêmio de Melhor Filme, Melhor Diretor para o trabalho do desconhecido francês Michel Hazanavicius e Melhor Ator para a espetacular interpretação do também desconhecido (e também francês) Jean Dujardin.

Até aí, nada de mais. Só que ainda não mencionei que O Artista é uma comédia dramática rodada inteiramente em preto-e-branco… e sem diálogos. Sim, é um filme mudo. MUDO. Para conseguir arrastar o público médio ao cinema e não oferecer nada além de imagens sem cores e um ou outro momento de som, de fato a fita precisa ser no mínimo excelente, não?

E todo este frenesi justifica-se? Bem, é uma pergunta difícil de responder. O Artista é um filme correto, com uma trama tão simples que quase beira o burocrático e que não possui milhões de atrativos quando analisado enquanto enredo. Mas é dotado de um charme tão irresistível, de uma nostalgia tão intensa, que cresce violentamente se visto com “sentimento”, no sentido mais babaquinha da palavra. Ajuda muito se você é um cinéfilo inveterado familiarizado com as clássicas produções que brotavam em Hollywood nos anos 20 e 30. Ao final, O Artista revela-se uma apaixonadíssima declaração de amor à arte de fazer cinema, e seus astros há muito esquecidos, como Tyrone Power, Rudolph Valentino e Douglas Fairbanks – este último, por sinal, referenciado nesta fita com uma seqüência de sua maior obra-prima, A Máscara do Zorro (1920).

O Artista acompanha, assim, a dramática trajetória da fictícia estrela da Kinograph Pictures, George Valentin (Dujardin). No auge de sua carreira, em 1927, Valentin é venerado pelos fãs e seus popularíssimos filmes de aventura atraem multidões. Claro que a enorme simpatia do astro (evidenciada sobretudo pelo sorriso de 360 dentes de Jean Dujardin, hehehe) não esconde certo encantamento pelo sucesso, tanto que nem dá muita bola para seu casamento que já está com um pé no buraco. Não que isso importe muito, já que Valentin anda sentindo um negocinho pela dançarina e aspirante a atriz Peppy Miller (a encantadora Bérénice Bejo, esposa do diretor Michel Hazanavicius), que está tentando um lugar ao Sol e anda meio “saltitante” só de ficar perto de seu ídolo…

A ascensão de Peppy Miller ao estrelato coincide com a chegada do cinema falado. Valentin, declaradamente descrédulo e resistente à nova técnica, declara a seu chefe, o cineasta e produtor Al Zimmer (John Goodman): “As pessoas querem me ver, nunca precisaram me ouvir falar”. Infelizmente, estava errado: perde o emprego, vê seu primeiro filme como diretor transformar-se em um fiasco total e, com a crise financeira do final dos anos 20, decreta falência. E assim, enquanto as comédias água-com-açúcar estreladas por Peppy Miller popularizam-se cada vez mais, George Valentin mergulha paralelamente em uma espiral de decadência e ostracismo.

O enredo, percebe-se, é simples. E até meio previsível. O que faz toda a diferença em O Artista é a forma com que a produção é estruturada e desenvolvida – rodada carinhosamente no velho formatinho standard – para quem não sabe, aquele formato mais quadrado quase extinto com o advento do widescreen -, O Artista carrega referências em toda sua narrativa – seja nos enquadramentos de cena, com algumas tomadas descaradamente roubadas de clássicos do expressionismo alemão, seja na magistral trilha sonora incidental de autoria de Ludovic Bource (merecidamente premiada com o Oscar), seja na cuidadosa edição que reverencia o estilo de sobreposição tão usado no cinema dos anos 20, seja no formato dos intertítulos que aparecem vez por outra para ajudar a contar a história, seja em alguns diálogos que os amantes de cinema reconhecerão no ato – Bérénice Bejo sussurrando “Eu quero ficar sozinha” lembrou alguém a você? ;-)

Mesmo com tantos elementos para conquistar os fãs da sétima arte, O Artista ainda tem como seu maior trunfo a maravilhosa interpretação de Jean Dujardin. O francês, bastante popular em seu país natal em virtude de uma série de fitas de espionagem que satirizam James Bond, não só incorporou um astro do cinema mudo como também atua como se estivesse, de fato, naquela época: o ator transita tão perfeitamente da simpatia de seus tempos áureos para a amargura e o desespero da queda do personagem, que em alguns momentos não é possível aceitar que trata-se, afinal, do mesmo ator. E como não citar o sensacional cãozinho Uggie, um autêntico ladrão de cenas? Alguém por favor crie logo uma categoria de Melhor Animal no Oscar! :-D

Como se pode perceber, O Artista nada mais é do que uma singela homenagem não só ao cinema, mas também à aqueles que ajudaram a construir o cinema. Afinal, se é merecedor de todo este bafafá, de todo este sucesso e de todos estes prêmios… bem, a resposta está nos olhos de quem vê: pode ser apenas um filme, e pode ser também uma experiência mágica e, por algum tempo, inesquecível. Assim como o próprio cinema.

THE ARTIST • FRA/BEL • 2011
Direção de Michel Hazanavicius • Roteiro de Michel Hazanavicius
Elenco: Jean Dujardin, Bérénice Bejo, John Goodman, Penelope Ann Miller, James Cromwell, Missi Pyle, Beth Grant, Ed Lauter, Malcolm McDowell.
100 min. • Distribuição: The Weinstein Co./Paris Filmes.


Missão Impossível III

02/04/2012

Crítica de Cinema – Texto publicado originalmente em A ARCA, em 03/05/2006.

Então, como qualquer ser humano da face da Terra sabe, em 1996 o irregular Brian DePalma dirigiu o sucesso Missão Impossível, “quase” releitura da série de TV homônima que fez a alegria da nerdaiada dos anos 60. Quatro anos depois, o péssimo John Woo, mais conhecido como “mamãe-sou-obcecado-por-pombas” (sem malícia, por favor), assumiu as rédeas da continuação do primeiro filme, Missão Impossível 2, apelidado de M:I.2. E como qualquer ser humano da face da Terra sabe, enquanto o primeiro filme gerou certa controvérsia – uns gostaram, outros não -, o segundo ganhou a alcunha de LIXO TOTAL por unanimidade. Com isto em mente, alguém me responda: precisava de mais uma continuação? Mais uma?

Hum… na verdade, acho que precisava sim.

O que acontece é o seguinte: claro que, assim como boa parte dos remakes, o Missão Impossível estrelado pelo senhor Tom Cruise jamais chegaria aos pés da brilhante série de TV criada por Bruce Geller. Ainda assim, o seriado fornece um leque de possibilidades que poderiam transformar sua versão cinematográfica em uma produção de ação/suspense deveras divertida; possibilidades estas ainda não exploradas pelo cinema com dignidade. O primeiro longa, aliás, eu só levo em consideração por reunir uma gama de atores internacionais mais do que talentosos. O segundo… bem, será que ALGUÉM NO MUNDO gostou daquilo? Talvez a Katie Holmes, mas tenho certeza que ela falou que sim só pra não contrariar o marido. Senão ele surta, dá mais vexame, aí já viu. :-)

Então, quando digo que talvez a cinessérie precisasse de uma nova seqüência, é porque ainda acreditava, mesmo duvidando bastante do resultado, que Missão Impossível merecia ao menos um filme digno nas telonas. Não importa se a saga só existe para massagear o ego do titio Cruise (e só existe por isto mesmo), desde que seja uma massagem de ego divertida também para nós, espectadores.

A boa notícia é que, mesmo com uma ou outra falha e um final absurdamente incoerente e exagerado, o novo Missão Impossível III (Mission Impossible III, 2006), também conhecido como M:I.III, inacreditavelmente ultrapassou as péssimas expectativas e mostrou-se o longa de ação/pancadaria mais legal do ano até agora. Sério, a fita é MAIOR LEGAL! A ótima sacada dos produtores foi entregar a direção a um sangue novo que atende pelo nome de J. J. Abrams. Abrams, ninguém menos que o criador das séries Alias e o hype do momento Lost, aproveitou as qualidades do primeiro filme, deixou de lado toda aquela babaquice de “violência poética”, “balé de balas” e “pombas malditas voando em câmera lenta” do segundo e injetou uma dose cavalar de adrenalina – mas com cuidado para não deixar tudo muito inverossimil.

O resultado? Esqueça a história. Esqueça o final tosco (sim, é beeem tosco). E acima de tudo esqueça Tom Cruise. O que deve ser levado em consideração na projeção de M:I.III é justamente o que ele tem de melhor: as mirabolantes seqüências de ação, o sádico e vingativo vilão vivido com maestria pelo oscarizado Philip Seymour Hoffman (Capote), a nervosíssima cena de abertura e as fodáximas habilidades técnicas de J. J. Abrams na direção – o cara realmente é capaz de deixar a platéia tensa e totalmente paralisada em momentos específicos.

A trama é qualquer nota, mas não chega a incomodar: Ethan Hunt (Cruise) deixou de agir em campo para se dedicar à tarefas internas na agência do IMF – para quem não sabe, Impossible Mission Force. Depois de viajar pelo mundo arriscando sua vida nas mais perigosas missões, o agente só quer a tranqüilidade de uma “mesa de escritório” e curtir o noivado com a doce enfermeira Julia (Michelle Monaghan, a gatíssima atriz de Beijos e Tiros e Terra Fria, que não se esforça muito…), que por sinal não sabe que o noivo é um agente secreto. Afe, é claro que tinha que ter um romance no meio, afinal o filme foi produzido por Tom Cruise, o “homem apaixonado” do momento… ugh! :-D

Continuando, Hunt só quer mesmo uma casa no campo e seus livros e discos, como diria a senhora Elis Regina (!). Em plena festa de noivado, entretanto, ele é procurado por seu superior na IMF, o dúbio John Musgrove (Billy Crudup, Peixe Grande). Musgrove sabe que o cara não quer nem saber de distribuir tiros por aí, mas mesmo assim lhe pede para voltar à ativa, nem que seja para a única missão de resgatar a agente Lindsey Ferris (Keri Russell, a Felicity da série de TV homônima), seqüestrada enquanto tentava capturar o maníaco traficante Owen Davian (Hoffman). Hunt se vê forçado a voltar, já que Lindsey era sua pupila e entrou na IMF justamente por sua indicação. Ah sim, esqueci de dizer que Lindsey é uma fofurinha, mas isto é um mero detalhe das nossas vidas. Por sinal, o páreo fica duro entre ela e a Michelle Monaghan. Eu ficava com as duas. ;-)

Enfim, finalizada esta missão, Hunt e sua equipe, formada por Luther (Ving Rhames, o único remanescente das fitas anteriores além de Cruise) e pelos novatos Declan (Jonathan Rhys-Meyers, em cena bem menos do que deveria) e Zhen (a belíssima Maggie Q), encontram uma pista do paradeiro de Owen Davian e, contrariando as ordens do chefão do IMF Brassel (Laurence Fishburne, numa participação pequena mas bem legal), seguem na tentativa de capturar o meliante. Mas Davian é um homem astuto, extremamente perigoso e totalmente vingativo. E não pensará duas vezes antes de ferir cirurgicamente aquela que Ethan Hunt mais ama em toda a face do planeta Terra… ui ui ui.

Esta é a linha de enredo. Claro, não é somente isto: ao contrário do que o teaser trailer revela, o enredo traz suas pequenas reviravoltas. Nada que importe muito, por sinal: tudo aqui é só motivo para que Ethan Hunt viaje o mundo mais uma vez e protagonize seqüências de tirar o fôlego, como a tensa operação de resgate de Lindsey Ferris seguida de uma pavorosa perseguição de helicóptero (no bom sentido) e o embasbacante e ensurdecedor ataque aéreo na ponte. Ainda que sem novidades, estas duas cenas especificamente mostram que J. J. Abrams é um excelente diretor de cenas de ação. E… meu Deus do céu, o que é aquilo que acontece com a Keri Russell? Céus, vou ficar sem dormir por três dias! Medo.

E ver o Tom Cruise levando um sarrafo do Philip Seymour Hoffman vale qualquer preço! Aliás, o Tom Cruise não é mais o superhomem de M:I.II e, aqui, apanha feito um condenado. :-)

Por outro lado, M:I.III traz uma das soluções finais mais absurdamente clichês de todos os tempos (sim, a conclusão é horrorosa) e em dados momentos não consegue deixar de apelar para efeitos humanamente impossíveis – a seqüência do pára-quedas é tão realista e tão crível quanto a ridícula “cena do R” de A Ilha. Aliás, o lance todo de “defender a quem ama”, de “eu não sou nada sem meu amor” e de “fazer tudo por paixão” imposto em cada fotograma da película dá uma leve impressão de imposição do produtor. Sim, depois que se apaixonou pela Katie Holmes, o Tom Cruise ficou um porre! Só faltou uma dedicatória a ela no final da projeção… Hehehe!

Mas como disse lá em cima, ninguém se importará com este detalhe. O que deve ser levado em consideração é exatamente aquilo que M:I.III tem de melhor: as poderosas cenas de ação e a capacidade de transformar o espectador num saco de nervos a cada uma destas cenas. Afinal, ninguém pagará ingresso para ver romance-mela-cueca aqui, não é mesmo? Como resultado final, ainda que não seja um clássico, M:I.III é uma experiência ultra-divertida, está bem além dos longas anteriores e sem dúvidas representa o melhor filme da saga (que provavelmente terminará aqui, levando em consideração a forma com que o filme acaba). E se você se centrar na parte “nervosa” da fita e esquecer o restante, presenciará o filme de ação mais bacanudo do ano até agora. E o que é melhor: sem as POMBAS MALDITAS voando pra lá e pra cá em câmera lenta! Afe, eu odeio aqueles ratos com asas… :-P

CURIOSIDADES:

David Fincher era a primeira escolha para assumir a direção de M:I.III. O cineasta responsável por Se7en e Clube da Luta pensou seriamente em aceitar a proposta, e até trabalhou um roteiro apoiado na idéia de Ethan Hunt investigando o mercado negro de tráfico de “pedaços de corpos” na África (!!!). Infelizmente, Fincher não pôde aceitar por estar envolvido na produção do ótimo Os Reis de Dogtown, de Catherine Hardwicke.

• O promissor Joe Carnahan foi convidado para assumir a direção com a ausência de Fincher. Tom Cruise optou por Carnahan ao conferir o resultado final do impressionante Narc, da qual o ator foi produtor executivo. Carnahan aceitou, mas pulou fora do projeto alegando “diferenças criativas” apenas um mês antes das filmagens (inicialmente marcadas para agosto de 2004). Este pequeno detalhe atrasou a produção de M:I.III em um ano – já que, neste meio tempo, Tom Cruise aproveitou para mergulhar de cabeça na tragédia chamada Guerra dos Mundos.

Thandie Newton, que viveu a mocinha em M:I.II, foi sondada para retornar nesta seqüência, mas recusou o trabalho pois, na época das filmagens, decidira se afastar um pouco do cinema para se dedicar à sua família. Seu papel na trama foi então reescrito e transformado em outro totalmente diferente, que por sinal seria interpretado por ninguém menos que Carrie-Anne Moss (a nossa amiga Trinity). Porém, com a saída de Joe Carnahan e a chegada de J. J. Abrams, o roteiro foi reescrito mais uma vez e a personagem, definitivamente limada. :'(

• Os personagens de Philip Seymour Hoffman e Keri Russell seriam vividos respectivamente por Kenneth Branagh e Scarlett Johansson. Branagh pulou fora ao notar que as filmagens atrapalhariam o cronograma de seu novo trabalho como diretor, As You Like It. As razões da saída de Johansson não foram esclarecidas…

M:I.III – MISSION IMPOSSIBLE III • EUA • 2006
Direção de J. J. Abrams • Roteiro de J. J. Abrams, Alex Kurtzman e Roberto Orci
Elenco: Tom Cruise, Michelle Monaghan, Philip Seymour Hoffman, Keri Russell, Ving Rhames, Billy Crudup, Jonathan Rhys-Meyers, Maggie Q, Simon Pegg, Eddie Marsan e Laurence Fishburne.
124 min. • Distribuição: Paramount Pictures.