À Procura da Felicidade

Crítica de Cinema – Texto publicado originalmente em A ARCA, em 29/01/2007.

Se você, leitor, é um cinéfilo inveterado, com certeza já assistiu alguma coisa ou pelo menos já ouviu falar de Frank Capra. E se você não faz idéia de quem seja este meliante, vai saber agora: Capra, nascido em 1897 e falecido em 1991, é tido como um dos maiores cineastas que o cinema dos Estados Unidos já viu em toda sua história. O público ianque só podia considerá-lo assim, já que o estilo narrativo das fitas de Frank Capra exaltava justamente os ideais de otimismo e perseverança que a platéia de sua época, à beira da Depressão dos anos 30 e da iminência da 2.ª Guerra Mundial, queria e PRECISAVA alimentar. Independente de qualquer coisa, Capra realizou maravilhosos longas-metragens que, hoje, tornaram-se clássicos indiscutíveis – como Aconteceu Naquela Noite (1934), o primeiros dos três únicos filmes a levar os cinco Oscars principais; O Galante Mr. Deeds (1936); Do Mundo Nada Se Leva (1938); A Mulher Faz o Homem (1939); A Felicidade Não Se Compra (1946); entre muitos outros.

A citação a Frank Capra é bastante cabível. Porque À Procura da Felicidade (The Pursuit of Happyness, 2006), novo filme de Will Smith, poderia perfeitamente ter sido dirigido por Capra. A história real do banqueiro Chris Gardner, homem de posses limitadas que perdeu o pouco que tinha, tornou-se um sem-teto e, pouco tempo depois, virou milionário (!), carrega nas costas toda a estrutura padrão dos clássicos do saudoso cineasta: traz um homem que chega ao fundo do poço, depois desce mais um pouco e, com muita coragem e humildade, luta contra a opressão da sociedade até conseguir se levantar e vencer na vida, e tudo isto sem perder suas virtudes. Impossível não se lembrar dos filmes de Capra ao assistir À Procura da Felicidade, assim como é até fácil imaginar o saudoso James Stewart, o ator preferido de Capra, no papel de Will Smith.

O melhor de tudo é que esta nova fita, dirigida com leveza e simplicidade pelo italiano Gabriele Muccino (o mesmo de O Último Beijo, fita de sucesso que ganhou uma refilmagem ianque chamada Um Beijo a Mais e estrelada por Zach Braff), também se assemelha aos longas de Frank Capra em um aspecto importante: não chega a cair na mesmice. À primeira vista, pode parecer que À Procura da Felicidade é apenas um drameco clichê estadunidense feito para fazer o espectador chorar de forma programada e papar algumas estatuetas da Academia. E parece mesmo, tanto que este que vos escreve declarou publicamente seus temores em várias notícias aqui n’A ARCA. E na verdade, em alguns momentos é, de fato, fabricado para arrancar lágrimas até mesmo de sujeitos sem coração. Nada disso: estamos falando é de uma película sincera, humilde, que sensibiliza e diverte em doses até equilibradas. Sério, ao final, você sai com os olhos mareando e um gigantesco sorriso nos lábios.

Também, não é pra menos: Gardner, vivido por Will Smith, é um sujeito em constante busca à tal felicidade do título. Ao início dos anos 80, ele tem uma esposa sofrida, Linda (Thandie Newton, de M:I.2, em surpreendente interpretação), e um engraçadíssimo filhinho de cinco anos, o esperto Christopher (Jaden Christopher Syre Smith, que também é filho de Will Smith na vida real). Só que a maré não está pra peixe: Gardner não tem um emprego fixo e tem que se virar vendendo, ou tentando vender sem sucesso, um aparato de raio-X que, em suas próprias palavras, “é ligeiramente mais avançado do que uma máquina de raio-X comum e o dobro de seu preço”. Linda já não agüenta mais o aparente descaso do marido e não consegue lidar com o fato de trabalhar feito uma louca para bancar praticamente sozinha as contas do apartamento. Metade das contas, aliás, estão inadimplentes há meses. Impostos, multas de estacionamento, aluguel… Sentindo-se pressionada, Linda não resiste ao tranco, surta legal e cai fora… largando Christopher com seu agora ex-marido.

O caminho das pedras de Chris Gardner começa aqui: sem dinheiro e sem qualquer retorno da tal venda autônoma dos tais aparelhos, o cara encanta-se com a possibilidade de se tornar um corretor e, depois de muito encher o saco do executivo Jay Twistle (Brian Howe), consegue um estágio não-remunerado em sua firma, com uma remota possibilidade de contratação dali a algum tempo – a cena em que Gardner convence o profissional com seus dotes extraordinariamente avançados na matemática, representada por um Rubik’s Cube (um dos mais lendários jogos dos anos 80), é excelente.

O problema é que a vida não dá trégua para o indivíduo. Assim, Gardner e seu filho são expulsos do apartamento onde vivem. Com o pouco de dinheiro que lhe sobra, o pai leva o filho para morar em um hotel. Com o tempo, é também expulso de lá. Não há alternativa a não ser passar os dias trabalhando a troco de nenhum salário e estudando a todo instante, e no final do dia, buscar Christopher na escolinha e correr para um abrigo de indigentes – e quando não há vagas lá, se virar para dormir em qualquer canto, seja a fachada de uma lanchonete decadente, seja o banheiro público de uma estação do metrô. Só o que fica inabalável é o amor que Gardner sente pelo pequeno Christopher, o que o faz não desistir de alcançar seus objetivos.

É a partir daí que se percebe como faz toda a diferença a visão de um diretor estrangeiro neste tipo de história. A mão leve de Gabriele Muccino não chega a derrapar nos clichês que surgem como obstáculos no caminho, e entrega algumas cenas que, se não fossem os diálogos em inglês e o rostinho de mega-astro de Will Smith, poderiam perfeitamente ter saído de um drama obscuro de qualquer canto do planeta. Parte deste mérito está no dinâmico roteiro de Steve Conrad (o mesmo que escreveu o mediano O Sol de Cada Manhã, com Nicolas Cage), que detalha o sufoco dos personagens centrais evitando cair no velho discurso do “sonho americano” e sem entregar-se ao mais puro dramalhão.

Claro que, inevitavelmente, há uma ou outra situação mais, digamos, melodramática – para não dizer “açucarada a ponto de causar diabetes nas pessoas”: a primeira noite no abrigo, por exemplo. E a cena do sujeito tentando invadir o banheiro público. Mas até que estes poucos momentos não chegam a incomodar. Seqüências inspiradas, como aquela em que Gardner mostra como funciona a “máquina do tempo” a Christopher, compensam as falhas.

E Will Smith? Bom, ele se sai muito bem no papel de Chris Gardner. Sua construção do sem-teto-que-vira-milionário é bastante contida, sem exageros. Mas não creio que valha uma indicação ao Oscar, pra ser sincero. Smith é um ótimo ator dramático – o fenomenal Ali, de Michael Mann, é uma prova concreta –, mas devo dizer que esperava muito, mas muito mais de sua atuação. E a Academia perdeu uma chance de ouro de fazer história por não ter indicado a grande alma de À Procura da Felicidade: Jaden Christopher Syre Smith. Não parece, de modo algum, que estamos vendo um garotinho de sete anos ali (o personagem tem cinco anos, mas o ator tem sete). Impressionante o grau de maturidade do ator-mirim no papel, e mais impressionante como sua presença em cena só faz o personagem de Will Smith crescer ainda mais. Pois é, o moleque é o orgulho do papai. :-P

Só a presença de Jaden Christopher Syre Smith já vale uma visitinha a À Procura da Felicidade. Felizmente, o filme é mais do que isso. Estamos falando de uma fita simples, sincera, que pode até não ser tão fiel assim à sua fonte – sabe-se, por exemplo, que o verdadeiro Chris Gardner tinha lá seus “desvios” e não era um homem tão perfeito e tão humilde quanto a fita pinta –, mas que não faz muito esforço para cumprir sua intenção de mostrar o quanto pode-se conseguir com um pouco de esforço, ainda que saibamos que, afinal, trata-se de um filme, não da vida real, como ela é. De qualquer forma, Frank Capra já defendia, em sua época, que o mais importante do cinema é fazer o público acreditar que há possibilidade de uma virada, de um pouco de melhora nesta turbulência toda que é a vida.

E quando o pequeno Christopher segue contando a piadinha do “toc toc” ao final da película… não adianta, a gente acaba acreditando mesmo.

CURIOSIDADES:

• Aqueles que manjam de língua inglesa certamente captarão um erro gritante no título original da fita (a saber, a palavra Happiness está escrita com a letra “Y” no lugar da letra “I”). A exemplo do ótimo terror Cemitério Maldito (cujo título original traz a palavra cemetery escrita sematary, por ser desta forma que a palavra está escrita na placa do tal lugar), há um significado para esta grafia errada; significado este que é explicitado já nos minutos iniciais de À Procura da Felicidade.

• O nome do diretor Gabriele Muccino para a direção de À Procura da Felicidade foi uma escolha exclusiva de Will Smith. Ele quis contratar Muccino depois de assistir a O Último Beijo e entender que o tom onírico aplicado pelo cineasta em seu filme de maior sucesso era o tom que queria aplicar a esta película.

• O verdadeiro Chris Gardner faz uma pontinha ao final da fita, atravessando a tela de um lado a outro ao fundo.

• Boa parte dos figurantes são moradores de rua que receberam salário de extras. O salário pago a eles foi o mínimo da categoria em São Francisco (cerca de US$ 8,62 a hora), mais um prato reforçado de comida ao dia. Muitos dos moradores de rua usados no filme não viam dinheiro em suas mãos há anos.

THE PURSUIT OF HAPPYNESS • EUA • 2006
Direção de Gabriele Muccino • Roteiro de Steve Conrad
Elenco: Will Smith, Jaden Christopher Syre Smith, Thandie Newton, Brian Howe, James Karen, Dan Castellaneta, Kurt Fuller.
117 min. • Distribuição: Columbia Pictures.

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