A Queda! As Últimas Horas de Hitler

Crítica de Cinema – Texto publicado originalmente em A ARCA, em 04/05/2005.

Na seqüência de abertura de A Queda! As Últimas Horas de Hitler (Der Untergang/Downfall, 2004), acompanhamos um grupo de jovens alemãs sendo escoltado por oficiais da SS, em direção à Toca do Lobo, o quartel-general de Adolf Hitler. As garotas, candidatas ao cargo de secretária pessoal do Führer, estão em polvorosa, nervosas, ansiosas e esperando causar uma boa impressão. Quando Hitler chega, as mulheres comportam-se como se estivessem frente à frente com um ídolo da TV. Depois de um rápido teste, Hitler escolhe a jovem Traudl Junge, de 22 anos, para ocupar o cargo. É a glória para a garota. Tudo isto acontece em uma madrugada fria de Novembro de 1942.

A cena seguinte avança dois anos e cinco meses no tempo, mais exatamente em 20 de Abril de 1945. Estamos no bunker do Führer, instalado no subsolo da Chancelaria Alemã. É o dia do 56.º aniversário do ditador. Em um dos cubículos que formam o esconderijo subterrâneo, Traudl Junge dorme. A secretária é acordada por um estouro. As bombas que explodem do lado de fora do cubículo indicam que o inimigo, o exército russo, aproxima-se com a velocidade e o efeito de um rolo compressor. Todos sabem que, a partir daí, ficar em Berlim é o mesmo que pedir pra morrer. A Alemanha está reduzida a pó, e só um milagre poderia causar a vitória de Hitler, que também esconde-se no bunker. Nas duas horas e meia de projeção que se seguem, o espectador se transformará em testemunha ocular de um período de dez dias na cúpula nazista. Até o dia 30 de Abril de 1945, Adolf Hitler cometerá suicídio. Em seguida, a Alemanha cairá.

Este é o plot central de A Queda!, um dos longas mais corajosos a aportar nos cinemas nos últimos tempos. “Corajoso”, porque é talvez a primeira produção alemã a escancarar os “bastidores” da era hitleriana (à exceção das fitas da Leni Riefenstahl, mas estas não contam). E “corajoso”, porque mexer com uma figura histórica como Hitler poderia render controvérsia em cima de controvérsia, polêmica em cima de polêmica. E rendeu: antes mesmo de sua estréia, a fita do diretor Oliver Hirschbiegel foi acusada de humanizar Hitler e omitir suas atrocidades (pô, se eles omitiram atrocidades, imagino como seria se não tivessem omitido!) – o mais bizarro, contudo, é saber que estas acusações vieram tanto de defensores dos direitos humanos judaicos quanto dos próprios alemães. Balela pura! Inspirado em parte nas memórias da ex-secretária pessoal de Hitler, Traudl Junge (falecida em 2002), A Queda! vai além do ditador que conhecemos nos livros de História do Mundo, mas em momento algum quer justificar seus atos ou ceder-lhe uma redenção. Hirschbiegel deixa claro que Adolf Hitler foi, sim, um dos maiores monstros que a humanidade já conheceu.

E é justamente neste ponto que a produção acerta bonito. O roteiro, escrito por Bernd Eichinger (produtor de longas hollywoodianos como o inédito Quarteto Fantástico), distancia-se de Hitler e analisa o painel dos últimos dias do 3.º Reich não apenas por um, mas por vários pontos de vista, mas nunca pelo ponto de vista dele mesmo – o que nos faz entender que muitos dos envolvidos não eram, de fato, más pessoas ou loucos psicóticos como o comandante. Boa parte, como a própria Traudl Junge, estava ali apenas por ter sido seduzida pelas promessas constantemente pregadas pelo Führer; promessas de um novo mundo, menos caótico e mais justo. Outros, mal entendiam o que estava acontecendo, e só engajavam-se no ideal nazista por terem sido forçados a escolher um dos lados. E é através dos olhos destas pessoas, daqueles que rodearam Adolf Hitler em seus últimos dias de vida, que testemunhamos o declínio do 3.º Reich e, finalmente, o final de seu reinado de terror.

Para mostrar a crueldade e o pateticismo das estratégias políticas e militares do comando de Hitler, somos apresentados a personagens totalmente opostos, todos eles reais, conforme narrados no livro escrito por Junge. Só pra citar um exemplo: na primeira meia-hora, conhecemos Peter (Donevan Gunia), 13 anos e integrante da Juventude de Hitler, que ganhará uma medalha das mãos do Führer em pessoa por ter destruído sozinho dois tanques russos – para desespero de seu pai, um pacifista que só quer o filho amado de volta; em seguida, somos apresentados à macabra Magda Goebbels (Corinna Harfouch), esposa do braço-direito de Hitler, o escrotíssimo Ministro de Propaganda Josef Goebbels (Ulrich Mattes), tão lunático quanto o chanceler. Em dado momento, Magda executa seus seis filhos pequenos, por ter a convicção de que as crianças, “puras e perfeitas”, não poderiam viver num mundo sem o Nacional-Socialismo. Isto é um ser humano?

Com relação ao próprio Hitler, o ditador é delineado pelo roteiro e pela direção como um homem de diversas facetas. Ao mesmo tempo em que podia ser extremamente cruel e escroto com seus subordinados (alguns ainda devotos, outros não mais), podia também demonstrar sinais de cavalheirismo clássico com as mulheres que amava e confiava, dentre elas sua amante e em seguida esposa Eva Braun (Juliane Köhler) e a própria Traudl Junge (Alexandra Maria Lara), duas pessoas visivelmente iludidas pelos falsos ideais do nazismo – e no caso de Braun, presa pelo amor incondicional pelo homem que Hitler representava. Com os civis, agia categoricamente: se os russos realmente estavam prestes a invadir a cidade, algo que Hitler recusava-se a acreditar, o povo deveria ser massacrado pelos próprios alemães antes disso – inclusive mulheres e crianças – e a Alemanha deveria ser totalmente destruída, para que “não sobrasse nada ao inimigo além de terra queimada”.

Acima de tudo, Oliver Hirschbiegel apresenta Hitler como um louco, covarde, lunático e perverso, que sequer conseguia dominar a si mesmo. Falhas estas, cobertas pelo excepcional carisma que possuía; não era difícil para Adolf Hitler dizer qualquer coisa e fazer com que as pessoas confiassem no que dizia. Não à toa, o homem não precisou fazer muito para conquistar praticamente toda uma nação. Cegos, aqueles que o seguiam acreditavam até que o suicídio manteria a dignidade, o heroísmo e o orgulho intactos e alimentaria a ideologia das gerações futuras – desde que o ato fosse cometido para “não ter que se entregar ao inimigo”. Um absurdo. Felizmente, não é este Hitler carismático que vemos na telona. Á exceção, claro, da primeira seqüência, das garotas na Toca do Lobo, onde entendemos perfeitamente o fascínio que o homem exercia no povo germânico. É neste ponto que a direção nos posiciona para nos fazer entender sua mensagem.

Como cinema, A Queda! é um exercício impecável de roteiro, atuação e direção. Tudo é feito com realismo e muito “pé no chão”, ao contrário de bobeiras vazias como Olga e filmes romanceados e fantasiosos como A Lista de Schindler. Nada aqui é atenuado e/ou transformado em poesia. Os diálogos são excelentes e propiciam ótimas atuações. Mas quem rouba a cena, sem dúvidas, é o fantástico ator suiço Bruno Ganz, intérprete de Adolf Hitler. É incrível como o ator incorporou todos os tiques do ditador, bem como seus gestuais e sua voz. Chega realmente a assustar. Em termos técnicos, é um cinemão da melhor qualidade, feito da maneira mais simples possível, explorando com agilidade a claustrofobia dos corredores escuros do bunker e da própria Alemanha nazista.

Mais chocante do que analisar A Queda! como CINEMA, contudo, é analisá-lo como IMPORTÂNCIA HISTÓRICA. O trabalho de Oliver Hirschbiegel não é importantíssimo apenas por revelar e dissecar um lado desconhecido deste período negro na história da humanidade; é também oportuno e funciona como um tremendo tapa na cara nestes tempos de novas guerras que vivemos, com novos candidatos a ditadores e novas marcas que ficarão para sempre nas vidas dos envolvidos. E o que nós, civis, estamos fazendo pra mudar este quadro? Pois é, de certa forma, também somos culpados. É como diz a própria Traudl Junge, a real Traudl Junge, numa extraordinária e horripilante narração em off que abre e fecha a exibição de A Queda!. Como se não bastasse ser contundente, pesado, cruel e importante, ainda é assustadoramente atual.

CURIOSIDADES:

• O cineasta Oliver Hirschbiegel é bastante conhecido lá fora por conta do aclamadíssimo A Experiência, considerado um dos melhores filmes estrangeiros de 2001. O enredo envolve um cientista que, obcecado em descobrir como funciona o comportamento humano, desenvolve um experimento: mantém 20 voluntários numa “cadeia simulada”, 8 como policiais e 12 como presos. De repente, os presos começam a acreditar que realmente estão presos, assim como os guardas acreditam fielmente que são guardas… A Experiência é protagonizada por Moritz Bleibtreu (o namorado imbecil de Franka Potente no já clássico Corra Lola, Corra), e existe em DVD no Brasil.

• Bruno Ganz, intérprete de Adolf Hitler, consagrou-se ao protagonizar o excelente Asas do Desejo (1987), de Wim Wenders, diretor que recentemente anda muito em baixa. Ganz interpretou o anjo Damiel, que se apaixona por uma mortal, a trapezista de circo Marion (a belíssima Solveig Dommartin). Asas do Desejo ganhou uma refilmagem ianque em 1998, intitulada Cidade dos Anjos. Na versão gringa, o anjo ganhou o nome Seth, a trapezista virou médica e Ganz e Dommartin deram lugar a Nicolas Cage e Meg Ryan. E eu não sei dizer qual das duas versões é melhor!

• O ator Thomas Kretschmann, que dá vida ao oficial traidor Hermann Fegelein, é bem atuante em Hollywood; o ator já deu as caras em fitas como o fraco Blade 2, o mais-ou-menos Resident Evil: Apocalypse e o bacanão U-571: A Batalha do Atlântico. Recentemente, Kretschmann dividiu a cena com Adrien Brody no oscarizado O Pianista; e estará em breve nas telonas no esperadíssimo King Kong de Peter Jackson.

• A comovente narração em off de Traudl Junge, que abre e fecha o filme, foi extraída do documentário Eu Fui a Secretária de Hitler (2002), em que Junge fala pela primeira vez sobre a aterradora experiência de trabalhar para o Führer. O doc foi exibido recentemente nos circuitos alternativos do Rio e de São Paulo. Uma curiosidade mórbida: Eu Fui a Secretária de Hitler estreou no Festival de Berlim em 10 de Fevereiro de 2002, exatamente o mesmo dia e ano em que Traudl Junge faleceu, aos 81 anos.

• A atriz e cineasta Leni Riefenstahl (1902-2003), citada acima como “aquela cujos filmes não contam”, é quase considerada o maior nome do cinema alemão e um dos maiores nomes do cinema mundial. Quase. Um pequeno detalhe impede Leni de abocanhar este título: ela era grande amiga e protegida de Hitler. Seus filmes, na verdade, não passam de propagandas nazistas, encomendadas e financiadas pelo próprio Hitler com a finalidade de espalhar seus ideais e conquistar adeptos por toda a Alemanha. Independente de ser simpatizante da causa hitleriana, Leni é considerada um gênio em termos de técnica e estética cinematográfica, e seu trabalho mais conhecido, O Triunfo da Vontade (1935), é tido como um dos 10 melhores filmes de todos os tempos. É assustador, e olhe que digo com conhecimento de causa, já que perdi três noites de sono com este filme…

• O relacionamento entre Adolf Hitler e Eva Braun foi dissecado recentemente no polêmico longa Moloch (1999), do diretor russo Aleksandr Sokurov, que fez um relativo sucesso nos circuitos de arte do Brasil.

A Queda! foi indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2005.

DER UNTERGANG • ALE/ITA/AUS • 2004
Direção de Oliver Hirschbiegel • Roteiro de Bernd Eichinger
Baseado nos livros “Inside Hitler’s Bunker”, de Joachim Fest, e “Bis Zur Letzten Stunde”, de Traudl Junge e Melissa Müller
Elenco: Bruno Ganz, Alexandra Maria Lara, Corinna Harfouch, Ulrich Matthes, Juliane Köhler, Heino Ferch, Christian Berkel, Matthias Habich, Thomas Kretschmann, Birgit Minichmayr, Götz Otto, Donevan Gunia.
156 min. • Distribuição: Europa Filmes.

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