Instinto Selvagem

Crítica de Cinema – Texto publicado originalmente em A ARCA, em 14/04/2006.

Instinto Selvagem (Basic Instinct)

Fato verídico: em um ponto qualquer do ano de 1992, à frente de um hoje extinto cinema de rua, um bando de mini-nerds entre 12 e 14 anos aguardavam ansiosos a abertura da bilheteria de uma das duas salas de projeção, para conferir a esperadíssima estréia do blockbuster da vez: Batman – O Retorno. Enquanto a molecadinha babona tentava conter a empolgação ante a “chegada” do imbatível Homem Morcego, o mais novo da turma bradava, indignado: “Que Batman nada, quem quer ver um babaca vestido de preto? Vamos lá para o outro cinema ver a Sharon Stone mostrar a perseguida!”. Então é isso. Bem-vindos à maravilhosa e gloriosa puberdade do Zarko. :-P

O tal filme na qual a então semi-desconhecida loiraça revelou seus “países baixos” é Instinto Selvagem (Basic Instinct, 1992), suspense policial dirigido pelo holandês Paul Verhoeven no auge de sua carreira. Não apenas um filme, mas um filme-evento que mobilizou o público e tornou-se um marco. Exagero? No way. E isto não tem nada a ver com a qualidade da obra. Goste do resultado final ou não, a passagem de Instinto Selvagem pelos cinemas em 1992 representou e ainda representa um fenômeno e a abertura de mais uma porta na arte de se fazer filmes. Não, não somente por uma suposta, comentada e reveladora “cruzada de pernas”. E também não por ter mexido com a imaginação, a libido e os hormônios descontrolados dos homens e da molecadinha dos anos 90 (eu incluso)… hehehe! :-D

O fato é que muitos enxergaram em Instinto Selvagem nada além de um desfile de cenas ousadas e sem conteúdo. Mas a real é que a história da investigação do bizarro assassinato de um astro do rock vai muito além. O roteiro, escrito pelo então obscuro Joe Eszterhas – que tornou-se um superstar ao assumir o posto de roteirista mais bem pago de Hollywood com este filme (US$ 3 milhões) – sugere que o sexo, assim como a vontade de matar, está no sangue de cada ser humano como instrumento de manipulação e instinto natural de sobrevivência; daí o excelente título original (Instinto Básico), apagado pela tradução preguiçosa. Para Eszterhas, o mundo é dividido entre aqueles que conhecem suas armas “naturais” e não têm medo de usá-las para se posicionar na sociedade (os suspeitos do crime) e aqueles que não conseguem deixar de arriscar sua própria pele para conhecer e ultrapassar o limite (os policiais encarregados de desvendar o caso).

E como se não bastasse, há uma série de diálogos hiper-dúbios, personagens interessantes e um enredo bem coerente e amarradinho, com um pé no neo-noir e uma das femme fatales mais legais do cinema atual. Tá bom ou quer mais? :-D

O troço começa a pegar fogo já nas primeiras cenas, onde o espectador presencia o assassinato do músico e empresário Johnny Boz (numa seqüência bacaninha e bastante tensa). Não é surpresa para a polícia de São Francisco que o cara tenha sido apagado, já que todos sabiam que o decadente roqueiro vivia mergulhado nas drogas e em transações obscuras. A novidade é a forma com que aconteceu: Boz fora morto na cama, durante o ato sexual. Seu corpo fora encontrado nu, amarrado à cama com uma echarpe de seda, banhado em sangue e esperma. A arma: um furador de gelo. E o assassino, como o público já sabe nos primeiros minutos, é uma mulher.

O caso ganha contornos mais bizarros quando a polícia descobre que a última pessoa vista com Boz em vida – e conseqüente candidata a principal suspeita – foi Catherine Tramell (Sharon Stone), mulher rica, elegante, bissexual, escritora de sucesso e psicóloga formada, que andava freqüentando a cama do indivíduo vez por outra. O termo “bizarro” refere-se ao fato de a senhorita Tramell ser também a autora de um romance policial recém-publicado que narra justamente o assassinato de um astro do rock… a golpes de um furador de gelo… durante o ato sexual. Hmmm, aí tem! ;-)

Para investigar o caso, são designados os detetives Nick Curran (Michael Douglas) e Gus Moran (George Dzundza). Curran, dono de um passado tenebrosíssimo (que não contarei aqui, claro) e paciente da psicóloga Beth Garner (Jeanne Tripplehorn), também sua amante, sabe que algo está errado assim que bate os olhos em Catherine Tramell. Afinal, a moça demonstra uma frieza fora do comum… Num dos diálogos mais legais do filme, Curran pergunta: “Você não está triste com a morte de Johnny Boz?”, e Catherine solta na bucha, sem esboçar uma expressão sequer: “Claro que estou. Gostava de trepar com ele”. Céus! Estranhamente, à medida que as investigações avançam, Nick percebe que Catherine Tramell conhece seu obscuro passado e prevê todos os seus passos. O que ele não sabe é que é o protagonista do novo romance dela. E como seus livros estranhamente tornam-se realidade…

Inicia-se, então, um tórrido romance e um turbulento relacionamento de amor e ódio entre Nick Curran e Catherine Tramell, que atinge diretamente a todos ao seu redor, inclusive a perigosa namoradinha de Tramell, a sensualíssima Roxy (Leilani Sarelle), e a equipe da Corregedoria de São Francisco, que têm picuinhas com Nick e suspeita seriamente do envolvimento direto do detetive com a morte de Johnny Boz… e com as mortes que seguem a partir daí. Mas afinal, quem é Catherine Tramell? Até onde ela está ligada ao caso? Será ela a assassina ou nada além de uma doida que gosta de “brincar” com a cabeça dos outros? Até onde é letal envolver-se emocionalmente com a dissimulada e perigosa escritora?

Enfim, como pode-se ver, o lance vai muito além de sexo gratuito. Ainda assim, Instinto Selvagem não é apenas tórrido em seu enredo: a projeção é recheada de seqüências de corar qualquer puritano, como os amassos entre Catherine e Roxy, a seqüência do clube de Johnny Boz (a meu ver, a melhor do filme) e a já clássica cena do interrogatório, onde Sharon Stone cruza as pernas e escancara sua amiga “aranha” (!). Trechos que representaram uma dor de cabeça aos produtores, que sofreram pressão do estúdio (a decadente Tri-Star) e de instituições religiosas para amenizar seu conteúdo, além do protesto de grupos gays norte-americanos, que lutavam contra a forma com que o roteiro mostrava a homossexual Roxy, um dos “vilões” da história. O próprio Paul Verhoeven, até então um bem-sucedido diretor de filmes de ação que nunca dirigira um suspense policial até então, declarou à época que não via a hora de concluir o trabalho para poder dormir em paz… :-)

Ainda que tenham causado muito barulho à época de seu lançamento por conta destas cenas, parece que a censura entendeu que o longa jamais sobreviveria sem elas, visto que cedeu sem maiores grilos a classificação R (desaconselhável para menores de 17 anos) quando poderia condená-lo ao temido NC-17 (proibidíssimo para menores de 18) – ainda que Paul Verhoeven e o montador Frank J. Urioste, indicado ao Oscar por este filme, tenham sido forçados a remontá-lo 14 vezes para isto (!). O público respondeu à altura e gerou uma bilheteria de aproximadamente US$ 118 milhões só nos EUA – fora de lá, este número chegou a mais de US$ 350 milhões. Em sua chegada ao VHS, com a inclusão de cenas cortadas, rendeu US$ 53 milhões.

Acima de tudo, Instinto Selvagem tornou-se um tanto quanto marcante por não ter medo de ousar e escancarar o sexo como elemento crucial no desenrolar de uma inteligente e bem-construída história de suspense. Não podemos nos esquecer que, em 1992, o cinema comercial não era tão liberal como é hoje em dia; ao mesmo tempo que Instinto Selvagem causou o retorno impiedoso da censura nas salas de cinema, fez também com que Hollywood ampliasse sua visão e gerasse produções mais ousadas e controversas (não falo dos filhotinhos horrorosos que a película gerou, como o tenebroso Invasão de Privacidade, também com Sharon Stone). Hoje em dia, isto não é muito, e muitos sequer lembram de Instinto Selvagem. O que não tira seus méritos e seu merecido posto de um dos filmes de suspense/policial mais legais e bem-sacados dos últimos anos. A “cruzada de pernas” foi só a cereja do bolo. ;-)

Ah, sim: ao final, a turminha toda decidiu assistir Batman – O Retorno mesmo. Menos este que vos fala que, sozinho, convenceu o idoso bilheteiro que Instinto Selvagem não era tão pesado assim para um garotinho de 12 anos (não, imagine…). 20 minutos de chororô e lá estava eu, dentro do cinema, babando na Sharon Stone. E 14 anos depois, o pivete virou um jornalista mala que quase morreu assistindo a continuação das desventuras da senhora Catherine Tramell… :-D

CURIOSIDADES:

• A primeira escolha de Paul Verhoeven para o papel de Catherine Tramell era Kim Basinger (Celular: um Grito de Socorro, Provocação), que recusou de imediato ao ler o roteiro. Michelle Pfeiffer e Meg Ryan também foram cogitadas. A graciosa Lena Olin (A Sétima Vítima) chegou a assinar contrato, mas desistiu ao saber que Verhoeven era o diretor – não se sabe a razão, mas consta que ela não vai com a cara do elemento… Vai saber o que acontece, né? :-P

• Ao final, Verhoeven decidiu oferecer o papel a Sharon Stone por ter gostado de sua interpretação em O Vingador do Futuro, onde viveu a maligna esposa de Arnold Schwarzenegger. Segundo o cineasta, Stone provou com aquele papel saber lidar bem com um personagem malvado que pretende passar uma imagem de vítima.

• O papel de Roxy seria originalmente de Brooke Shields, que chegou até mesmo a rodar uma ou duas cenas. Ela desistiu por medo da mancha que a personagem, lésbica e junkie, poderia gerar em sua carreira. E eu pergunto: que carreira?

• O design dos vestidos usados por Catherine Tramell são quase idênticos aos usados por Kim Novak em um dos maiores longas-metragens de suspense da história do cinema, Um Corpo que Cai, de Alfred Hitchcock. A idéia de Paul Verhoeven era, com Instinto Selvagem, homenagear Hitchcock, mais especificamente este filme, da qual é fã absoluto.

• Paul Verhoeven declarou numa entrevista que um de seus objetivos com Instinto Selvagem era realizar o primeiro filme comercial hollywoodiano com um pênis ereto em cena.

• Para convencer Sharon Stone a não usar calcinha e conseguir rodar a tão polêmica cena do interrogatório, o diretor disse à atriz que sua genitália não poderia ser vista, pois aquela região não seria bem iluminada. Ela consentiu apenas com esta condição. Obviamente, ele mentiu. Ainda assim, Stone concordou em manter a cena após vê-la pronta, visto que, em sua concepção, aquilo realmente fazia parte da personalidade de Catherine Tramell. E cá entre nós, chauvinismos à parte, acho mesmo que a seqüência não poderia ficar de fora.

• Sharon Stone e Michael Douglas recusaram-se a usar tapa-sexo nas cenas de sexo entre Tramell e Nick Curran. Até hoje discute-se a veracidade destas cenas. Há quem diga que os dois realmente transaram em cena, o que teria sido um dos motivos para o divórcio entre Douglas e sua então esposa Diandra. O que é uma utopia, na verdade, já que o casal se divorciou anos e anos depois da produção da fita.

• O ator Bill Cable, intérprete de Johnny Boz, faleceu num acidente de moto em 1998. Cable foi modelo nos anos 70, e chegou a posar nu para a revista PlayGirl, variação feminina da Playboy, em 1974. O ator era um bom amigo do filho de Marlon Brando, Christian.

MOMENTO SPOILER: Até hoje, não se sabe ao certo quem realmente é a assassina de Instinto Selvagem. Embora o longa dê a certeza de que a culpada é a psicóloga vivida por Jeanne Tripplehorn, o final em aberto sugere que Catherine Tramell seja a dita cuja. Dúvidas à parte, a atriz que protagonizou a cena de abertura como a mulher sem rosto que golpeia Johnny Boz é mesmo Sharon Stone. Diz a lenda que haviam paramédicos de plantão nos sets de filmagem, para a) socorrer a atriz caso ela passasse mal por conta da violência da cena, ou b) socorrer o ator Bill Cable caso ela o golpeasse sem querer.

BASIC INSTINCT • EUA/FRA • 1992
Direção de Paul Verhoeven • Roteiro de Joe Eszterhas
Elenco: Michael Douglas, Sharon Stone, George Dzundza, Jeanne Tripplehorn, Denis Arndt, Leilani Sarelle, Bruce A. Young, Wayne Knight.
127 min. • Distribuição: Columbia Pictures.

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